No quarto, onde aconchegava a privacidade com a mulher, após chegar do trabalho, esbaforido e irritado, ela de tolerância avultada. Fazia parte de alguma congregação religiosa, laçada pela fita do Coração de Jesus, o terço passeando ave-marias entre os dedos, o balbucio diante a imagem de Nossa Senhora das Dores. Divergia, frontalmente, da arrancada do marido, posto entidade jornalística trazer-lhe muita responsabilidade, lhe surrupiar o tempo, mantê-lo mais atarefado. Nada bom; rogava a intercessão eficaz da Virgem, a quem tinha tanta devoção. Era um momento difícil. Ele, nem aí!
Some-se a isso, que o jornalista era ateu convicto. Para ele, a mulher estava estragando o latim e importunando a quem chamavam a Compadecida. Tolice. Mas, namorara e casara na Igreja, era amigo do pároco, jogavam juntos cartas e se deliciavam ao vinho não de missa.
Numa das vezes, ousou indagar ao amigo se a santa (o jornalista não sabia sequer a invocação) tinha qualificação para atender aos reclamos da sua cara metade. O clérigo deu a resposta óbvia: sim, que invadiu a expectativa do inquiridor, rasgou a página de esperança que estava imaginando escrever dentro dele: por amizade, o amigo de copo santo e de conversa leve, talvez facilitasse; e lhe afirmasse que tudo dependeria do humor da santa.
Qual nada! Voltou ao quarto, se deitou impaciente, resolveu se levantar para suspirar a brisa camarada da temperatura baixa. Quase derruba a imagem mantida, em porte médio, acordando a mulher que reclamou, chamando anjos e santos em lugar de impropérios.
O jornalista, já no alpendre, disse consigo: “Não ganharei a eleição”. E, de fato, corria até bem no puxar dos votos, mas, o adversário tomou a dianteira e o nosso amigo foi fragorosamente derrotado. Voltou para casa, o paletó ao ombro, fitando o chão e pensando em esmigalhar a santa fatal. Mas não fez isso. A padroeira das Dores não se negara à esposa fiel e devota. A santa merecia respeito – pensou. Quem sabe, com ateia devoção?!
José Leite Guerra é bacharel em direito, poeta e cronista