Essa produção excedente, devidamente resguardada dos efeitos de sol e chuva, vinha determinando uma inédita condição material não só em suas vidas, mas na de quantos humanos até então se ouvira falar.
Representantes por excelência do mundo neolítico, não tardariam os agricultores a serem pressionados pelos grupos caçadores da cultura paleolítica (regidos desde os tempos áureos pelo matriarcado, tinham sido, por este mesmo, afastados dos agrupamentos sectários ) a moverem-se dentro da apertada camisa de força do milenar conformismo que durante milênios paralisara qualquer tentativa de transformação na vida da aldeia.
Tratava-se de mudança bastante significativa na vida de homens e mulheres ficados nas aldeias. Eles e elas, no dizer jocoso dos caçadores, se tinham transformado num bando de adoradores de plantas que, num tempo e paciência infinitas, a experiência acumulada os ensinara a fazer com que germinassem, no lugar em cuja proximidade tinham construído frágeis cabanas para não as perder de vista. Cabanas em seu início bastante precárias, e que mal os protegia dos ventos da planície.
Haviam ficado, pois, na aldeia, homens, mulheres e crianças, para escárnio dos caçadores. Ficaram, na ótica preliminar desses mesmos caçadores, venerando plantas como se a deuses, ou simulacros desses, muito embora os frutos da lavoura fossem, no princípio dos cultivos, mais incertos que os da caça. Mas aconteceu das mulheres se posicionarem, desde o início, ao lado da cultura agrícola, em detrimento das caçadas. Dominantes que eram, foram decisivas para o afastamento dos caçadores.
Na visão precária dos remanentes paleolíticos, não passavam os agricultores de uns fracos que tinham renunciado ao uso das armas – pináculo da nobreza humana, numa possível visão de caçadores - para fazer pajelança de plantas, mimando-as, segundo aqueles mesmos perseguidores de animais.
Eis porque se tinham tornado motivo para chacotas e menosprezo. Mas agora a sorte mudara completamente em favor dos obsessivos e sectários revolvedores de terra. A vida para eles – e isso era inquestionável - vinha se tornando mais amena. Como explicar o milagre?
Assim como uma gazela ao ter o pescoço atravessado por flecha, uma planta não berra, expressa dor ou verte sangue quando podada de galhos, frutos ou grãos.
Talvez por isso os grãos se prestassem como alimento por muitos dias depois de colhidos. Uma vez secados ao sol e peneirados de tempos em tempos, em busca dos insetos neles escondidos, a vida útil desse futuro pão podia se prolongar, até mesmo pelo tempo que o sol leva para mudar seu nascedouro, de um hemisfério para o outro da cabeça de quem tem a sorte de, no mesmo tempo, enxergá-lo cruzando o céu.
E não demorou muito para os aldeões perceberem o que podiam fazer com as sobras acumuladas da agricultura. O rio estava ali, bem próximo, era questão de apenas encher os cestos com as espigas ainda verdes ou grãos já secos e descer com elas num vaso de junco calafetado com o besunto que estava sempre esborrando da terra, por toda aquela vastidão do Crescente Fértil.
A viagem de retorno à aldeia nunca era fácil, quando teriam então de navegar contra o curso do rio, a situação piorando quando o uso falho de velas, durante calmarias de vento, os obrigava a transportar os produtos e o próprio barco no lombo de burros que tinham seguido numa caravana paralela, pela margem do rio. Porém quando nem um tipo de acidente viesse prejudicar o resultado dos escambos realizados durante a viagem, é quase certo a constatação final de que o esforço valera a pena.
Abrindo aqui um necessário parêntese para lembrar que a ideia do lucro, que tanto impeliu a expansão do conhecimento quanto sofrimentos e derrames de sangue espalhou pela terra, não existia ainda na aldeia neolítica.
Preste o leitor atenção agora nessa mulher que, ao fim do dia está retornando do campo, aonde foi apanhar as ervas-de-cheiro (artemísia, carqueja, confrei, sálvia, manjericão, etc) que ora traz num grande cesto de ramos vegetais trançados.
As correias de mão do cesto ela as tem presas à testa, para, de braços livres emprestar equilíbrio ao bebê seguro por tipóia, à frente do seu corpo. A erva-de-cheiro que ela está trazendo irá servir, entre outras coisas, para embalsamar as tiras de gordura que aprenderam a tirar de nossos cadáveres escalpelados, e que serão distribuídas entre os aldeões, conforme necessidades de cada um.
Voltando, porém, à sucessão dos fatos, vezes ocorria de, naquelas viagens de escambo, o volume trazido suplantar o levado. Em alguns pontos de troca havia abundância de ferramentas. Sempre tão necessárias, melhoravam à cada dia, e, consequentemente, se reproduzindo em outras menos pesadas e mais especificamente utilizadas. As ferramentas, que tinham por esse tempo deixado a idade da pedra lascada pela do ouro moldável, não tardariam a introduzir a era do ferro fundido. As ferramentas em suas transformações era o que, de fato, inaugurava novas idades.
Noutro ponto do rio, mais além, os produtos do couro, madeira, chifres, muitos dos quais derivados da caça, podiam ser encontrados. O sal, ansiadamente desejado, era no entanto de posse precaríssima, pois provinha de terras desconhecidas e longínquas; oferecido em pequeninas poções, e, só muito mais tarde, transformado em salário na Suméria, serviria depois como inspiração para a primeira moeda, cunhada com a efígie de Dario, Rei dos persas e criador do dinheiro, durante o império Medo-Persa.
Mas os caçadores estavam voltando. Muitos deles, os mais jovens, tinham sido criados pela vastidão dos campos e eventualmente albergados em alguma fortaleza de caça, como era o costume social dos pais. Não conheciam a parentela remota que havia ficado para o trabalho de semear a terra, no entorno das aldeias fixas, e estavam agora espantados pelo que viam. Apercebiam-se agora, não das meras mudanças sazonais onde alguma eventual novidade podia, vez ou outra surgir, mas estavam sentindo sobretudo o impacto das novidades, da velocidade das transformações em curso. Aqueles que se dedicavam às viagens de troca, agora também costumavam esperar, na boca do rio, homens estranhos à aldeia. Estes chegavam em juncos carregados de valias, e deixavam parte delas na aldeia em troca dos grãos ali produzidos.
Aqueles estranhos passaram a ser então recepcionados sempre pelos mesmos indivíduos que já não se ocupavam de cultivos, e apenas se davam a esperar os visitantes por trás de alguma pilha de grãos. Depois das transações efetuadas, dedicavam-se a novas atividades que não mais contemplavam trabalhos de lavra da terra.
Se era assim, porque razão eles, caçadores, tinham sempre que viver expostos ao convívio das intempéries na vastidão das planícies, muitas das vezes desertos que, numa hora eram congelantes, noutra escaldantes, de inextirpáveis florestas e montanhas abruptas, sabendo de antemão que iriam sempre ouvir, nessas investidas, aqueles indefectíveis rosnados e rugidos de boas vindas, os quais, não escondiam, atrás de si, mais que uma fileira de dentes e garras afiadas, e isso, diga-se, quando havia na aldeia, e muito, o que se fazer agora? Havia ali, sobretudo, uma vida bem menos dura, repousante nos víveres estocados.
Vamos agora abrir novo parênteses para dizer que, na verdade, fomos nós, porcos, os primeiros agentes de segurança na vida nas aldeias. Como estávamos sempre pelas imediações, vagando entre a floresta e os aceiros humanos, estes podiam ouvir, de suas cabanas, os gritos que emitíamos no meio dos conflitos provocados pela aproximação de estranhos, quase sempre algum predador solitário.
Se o inimigo era forte o bastante para nos forçar a uma retirada estratégica, teríamos no entanto, e pelo menos, dado o aviso. No topo das árvores tinha sempre alguma ave de porte, pronta para, com sua poderosa garganta reverberando na concha acústica do bico alongado, repercutir o alarme disparado por nós.
Desnecessário dizer que os cães, infelizmente, estavam mais aptos a prestarem esse serviço que nós. E os seus donos, na guisa de valorizar o próprio recurso, passaram a nos perseguir, fosse insuflando eles contra nós, fosse no preparo sistemático de armadilhas disfarçadas na folhagem. Muitos deles, no entanto preferiam para nós a via do abate puro e simples, planejando tocaia por trás de alguma touceira, portando arma terrível como arco e flecha, embora uma ligeira mudança na direção do vento, vez ou outra pudesse denunciá-los ao nosso faro apuradíssimo, e, por conta disso, muitos deles acabassem pagando com a vida.
Essa irrupção paleolítica de caçadores, na vida plenamente neolítica das aldeias, trouxe consigo velhas práticas esquecidas, ou já abolidas. Técnicas de combate e terror, táticas de assédio e fustigação, próprias da caça ao tigre ou aos grandes paquidermes, por ex, ressurgiam para os pacíficos e tímidos agricultores, só que numa nova versão que transfigurava seus alvos. Pela primeira vez, um ser humano iria apontar uma lança para seu semelhante.
Os moradores habituais da aldeia, agricultores, jamais perceberiam o quanto, na esteira de uma primeira investida profissional na vigilância, os caçadores estavam, rapidamente, abrindo o leque das futuras e supostas medidas protetivas que, movidos pela inveja, haviam planejado em suas confabulações noturnas, em volta de fogueiras.
* Continua no próximo capítulo. Aguardem!
Alberto Lacet é artista plástico e escritor