Quando assisti à série da Globo "Os Dias eram assim" confesso que, no início, não suportei as cenas de tortura e tantas maldades dos tempos de chumbo dos anos 70 no Brasil. Mas depois, fui me interessando mais pelas outras tramas e engolindo o soco no estômago. O título da série, uma frase de música de Ivan Lins, tem a força da memória, como se dissesse: olha! Vejam! Os dias eram assim. Todo cuidado é pouco para não repetir...
Mas, os meus dias não eram assim!
A década de 70 foi uma década decisiva na minha vida. Em 1971 fui para os Estados Unidos em intercâmbio e lá tive contato com um país onde a vida universitária era igual à dos filmes; os hippies povoavam as ruas, se fumava maconha abertamente, os estudantes usavam calça jeans rasgadas, e ouviam Hair e Crosby, Still, Nash e Young, e eu, ocasionalmente perambulava pela Columbus University. Mas era secundarista, e só por vezes me arvorava nos lugares underground, ou pelos gramados lindos e cheios dos resquícios da contracultura. Eu me interessava mais por isso. Era a revolução dos costumes que eu assistia incrédula com os meus olhos da província. A minha política!
Em 1973 casei de véu e grinalda, ouvindo "Bridge Over Troubled Water". Sonhando em conhecer o mundo, a pintar o sete, literalmente, com as palhetas domésticas, e com o tão pouco conhecimento do que seria um casamento. Era jovem. Muito jovem. Sonhava com o amor romântico. Pobre menina! Nem sabia ainda que os dias não eram assim! E gostava da Jovem Guarda e por isso era taxada de alienada. Mas sentia as carnes trêmulas com Caminhando e Cantando em comunhão com o sentimento cala a boca de um País interditado, e ficava em estado de perplexidade com os Beatles, Tropicália – Alegria Alegria e a guitarra estridente dos Mutantes. Tudo o que me importava era minha calça Lee rasgada e um desejo de mandar tudo pro inferno.
A política, para uma jovem de catorze anos (no ano que não começou), era uma ideia perto de casa, mas abstrata, representada pelos longos cabelos de Eduardo Jorge Martins, o uniforme do Lyceu em Washington Rocha, os nomes de Sérgio Tavares e Lela Melquíades, e mais ao longe de Monica Lúcia e Leda Rejane/Everardo Queiroz (elas hoje minhas amigas, e ele in memoriam!) e depois pelas pichações dos muros de Flávio Tavares.
Em 1975 fui à Londres pela primeira vez e aí o bicho pegou. Eu de longe cantarolava "London London". O exílio de Caetano era também a minha melancolia pelo não vivido. Mas eu estava embriagada por Notting Hill e Portobello Road, para pensar em política. Meus olhos se encandeavam com os espelhinhos das túnicas Indianas. E eu ouvia Ravi Shankar e George Harrison! Em 1977 ganhei o LP de Vitor Jara, e chorei a tortura no Chile que nos colocava em contato com o mundo ao nosso longe redor. Te recuerdo Amanda! Em 1978 – o mundo rodou. Roda viva roda pião, e em 1979 meu mundo caiu, assim, com notas trágicas de bolero, minha vida deu guinadas, e o abismo olhou pra mim. Não me importava com a política e só, e somente só, a transgressão me dizia respeito. Estava com raiva. Muita raiva, e sexo, drogas e vídeo clipes, permeavam o meu imaginário.
A década de 70 me petrificou! E lembro de cada dia e hora que ficaram no meu corpo feito tatuagem!
Anos depois, com a campanha das Diretas retornei a prestar atenção à minha volta. E a quem dela participou. Conheci José Dirceu pelas fotos, e mais tarde pessoalmente, quando já tinha filho recém nascido, e o sono falava alto. Só queria dormir! Mas por cartas eu acompanhava o desejo pelas mudanças e o sonho que estaria por vir.
Assistindo à série, senti saudades dos saraus poéticos, das loucuras sexuais acontecendo; o sonho de um país mais igualitário, o amor, o amor, o amor, as músicas de Belchior e dos festivais que eu assistia de olhos bem arregalados e cantava todas as letras como se fossem minhas – Disparada, A Banda, Teorema e outras todas.
Em 1981, no Peru, assisti ao filme "Desaparecidos" (Missing, de Costa Gravas). Saí do cinema sozinha e com medo. Muito medo. Um medo que inundava o passado e o meu presente silencioso e afastado das lutas de quem fez o movimento estudantil e político desses tempos. Saí com minha mochila para Cuzco, em busca da paz dos Incas, mas meu coração estava assombrado. Estava sozinha, fragilizada e longe de casa. Até hoje sinto arrepios quando lembro de mim na imensidão de Macho Picchu! Só o som da samponha me acalmava. Pouco, pouco a pouco me ha querido....eu cantava!
Enfim, não precisa você ter sido presa e torturada para saber o que era o Brasil dos anos 70. Mesmo outsider, sentíamos a atmosfera de censura e medo no ar. Tínhamos amigos envolvidos. A vida era sob suspeita. A série me trouxe lembranças vividas ou não, e chorei muito. Com Cauby Peixoto Chorei! A questão da Aids e o filme Filadélfia. Cazuza! As referências às perdas todas; físicas e subjetivas, que um dia todos tivemos. Chorei com saudades de Juca, que, de São Paulo, me escrevia sobre as mudanças, aberturas e de toda a sua alegria em participar do momento mais decisivo do país. Chorei!
E os meus dias? Nunca mais foram assim...
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora