Em Campina Grande, no final dos anos 50, a palavra “assustado” passou a designar encontro dançante, com ou sem bebida, realizado de surpresa nas garagens ou nas salas das casas, e tirou o sossego de alguns pais. A moda, ou o imperativo categórico, era promover e freqüentar assustados, e adolescentes, rapazes e moças só falavam e pensavam nisto.
Dançar, o bicho homem há séculos o fazia, mas dizer que dançou em um assustado era a única forma de um adolescente dizer a si mesmo que já era rapaz, e muitos jovens só sonhavam com isto. Lira, certamente, era o que mais sonhava. Seu nome era José, único nome comum na família, e por isso todos o conheciam pelo sobrenome. Seus dois irmãos e suas duas irmãs dançavam como ninguém, para a alegria dos pais, que sempre dançaram com a felicidade de criança. Lira era tímido e desengonçado. Os assustados povoavam seus sonhos, mas os irmãos mais velhos o excluíam de suas festas, sob a alegação de que ele não sabia dançar e, portanto, não tinha o que fazer num assustado, a não ser atrapalhar. Com dezesseis anos, era o quarto dos irmãos, mas mesmo Raquel, a caçula da casa, com 15 anos, já distribuía ritmo nas garagens e salas onde pisava.
A dança, à época, era a forma mais simples e discreta de um jovem aproximar-se de uma jovem, viver a emoção de estar junto de alguém a quem amava platonicamente, iniciar um namoro ou simplesmente experimentar o modo publicamente permitido do desejo físico. Mas isto nunca passou pela cabeça de Lira, que era um platônico nato. Tudo que ele desejava era apenas dançar com uma garota (de preferência, com Lílian), deslizar sem partitura pelo salão, como faziam tão bem seus irmãos e a maioria dos colegas. Ou seja: Lira queria sentir-se irmão dos irmãos e ingressar no mundo dos rapazes.
Essa primeira frustração causava-lhe tal mossa na alma, que Lira não falava sobre isto com ninguém, nem mesmo com os colegas em quem confiava, a quem dizia não ter interesse pela dança. Certo dia, a alma ruiu, e o tímido resolveu publicar a dor. Esperou todos saírem de casa, aproximou-se da mãe e narrou o drama. A mãe riu-se, afagou-lhe os cabelos e disse que falasse com Raquel, que tinha todas as tardes livres, e tudo se resolveria em passo de bolero.
Lira criou coragem, e na primeira vez em que esteve a sós com a irmã, abriu-lhe o coração: pediu-lhe que dançasse com ele às tardes, quando os irmãos ajudavam o pai na pequena loja comercial, e que, principalmente, não comentasse isto com os irmãos nem com ninguém. Raquel anuiu, e Lira passava a manhã e a noite à espera da tarde, quando poderia arrastar seus primeiros passos trôpegos. O pior é que Lira, conquanto não levasse o menor jeito para a dança, queria aprender a dançar todos os ritmos, e bem. Foram meses de suor, cansaço e frustração. Lira arremedou fox, valsa, samba, bolero, rumba, choro, forró... Os passos misturavam-se em sua cabeça, as pernas se perdiam, e o resultado era a leveza e a inata perfeição de metrônomo da irmã perderem a paciência diante da pesada pedra que queria dançar, passarem do riso inicial à descrença, ao suspiro, ao resmungo. Mas Lira não desistia. Trôpego, envergonhado, cansado, humilhado, ele arrastava sua persistência, implorava a paciência da irmã, e esta, desprovida de qualquer senso pedagógico, seguia até o limite de sua didática implícita, que se anunciava ao primeiro resmungo.
Foram meses de tentativas e de pisadelas, embora com sessões curtas, e Lira, despertando do sonho de dançar bem como os irmãos, certificou-se de que já sabia dançar quase mal, aceitou que jamais aprenderia a dançar bem e prometeu a si mesmo coragem para ir a um assustado, sem dizer nada aos irmãos.
Os assustados do tempo eram todos movidos a radiola, e os discos que mais se dançavam eram os de Ray Conniff. “Besame mucho”, “Aquarela do Brasil”, “Too young”, “A stranger in Paradise”, “La mer”, “Love is a many splendored thing”, “Someone to watch over me”, “Aquellos ojos verdes”, “Summertime”… Tudo que Ray Coniff regia virava dança e tocava até furar o disco e varar a noite. Lira adorava todas estas músicas, que ele ouvia, imóvel, até a exaustão, sozinho, em longas jornadas noite adentro, enquanto seus irmãos as dançavam no passo leve do desejo. Definitivamente, Lira era um “displaced”, um nefelibata. Em seu platonismo não formulado, em sua incompetência para a vida, Lira amava Lílian à distância, como se fosse a primavera. Tinha os olhos verdes, essa Lílian, e, para desespero de nosso adolescente, irrompeu outra Lílian, de “olhinhos verdinhos”, na parada de sucessos da temporada, na voz de Nilton César. E Lílian, que já era sua miopia, agora ecoava delicada e melancolicamente em seu ouvido.
Mas lá vai Lira, sozinho, para o primeiro assustado, numa sala do colégio onde estudava. Ele entrará depois dos irmãos, meio escondido, para evitar a fraterna indagação sobre o que estaria fazendo ali, o mero olhar paralisante dos irmãos, e também para adiar as gozações, que inevitavelmente viriam no caminho de volta pra casa; por fim: para evitar o pior: não conseguir dançar, ainda que mal, depois do riso sardônico deles.
Numa esquina da sala, encolhido ao pé da escada que dava para a sala da diretoria, parece que Lira queria mesmo era dançar com os olhos, pois olhava e olhava longamente para todas as garotas, embora só visse Lílian. Chegou a trocar umas poucas palavras, creio que com duas ou três colegas de classe, mas não havia coragem para chamar ninguém para dançar. O tempo todo, quem rodava em sua cabeça e no salão era Lílian, que vez por outra passava ao seu lado, sempre em outros braços, sempre sorrindo por fora e anoitecendo Lira adentro.
Depois de muito olhar os rodopios de Lílian no salão, a cabeça de Lira era um prato de vitrola. Mas não seria nenhuma das Lílians que faria Lira passar da nuvem do chão para a nuvem do céu. Maria estava fora do paradigma amoroso de Lira, mas seria ela que, ao som da lenta e adequada para neófitos “Someone to watch over me”, tocaria em seu ombro e o convidaria para dançar. Maria feria o sonho, mas Maria era a possibilidade de dança, e para quem não tinha a coragem de tirar ninguém pra dançar, Maria inaugurava, em Lira, outro paradigma, que se ofertava como sonho. Lira, agradecendo a todos os Deuses por lhe enviarem Maria, não sabia se dançava com uma garota ou com uma filha dos deuses, e dançou, dançou e dançou. Embora dançando mal, Lira perceberia mais tarde que havia dançado melhor do que esperava. Isto mais tarde, porque, nos braços acolhedores de Maria, ele apenas sonhava, e, ainda que por apenas uma noite, Lira se esqueceu dos irmãos, dos colegas, dos pais, dos temores, até de Lílian. Por alguns instantes inesquecíveis, Lira sentiu, pela primeira vez, que era possível deixar de ser “a stranger in Paradise”.
Muitos anos depois, Lira, que continuava sentindo-se mais à vontade numa sala de cinema do que num salão de dança, está no Cine Paissandu, no Rio de Janeiro. O Paissandu, embora não sendo mais a sala da moda para os intelectuais daquele momento, ainda transbordava, em Lira, toda aquela aura dos anos sessenta: Francis, Millor, Maciel, Godard, Antonioni, festivais de música, Tropicalismo, Chico Buarque, Sartre, Camus, Marx, Freud, Marcuse, Paris em chamas, Primavera de Praga, Teatro do Absurdo, Antonio’s, Ipanema... Toda a mitologia que ele vivera vicariamente nas folhas do Pasquim, em sua pequenina Campina Grande, encontrava sua síntese simbólica no Paissandu. Para Lira, estar naquela sala de cinema era “pisar nos astros distraído”. Lira estava, pois, no Olimpo, e o filme era Manhattan. De repente, surgem Woody Allen e Diane Keaton na névoa delicada do lusco-fusco no planetário de Nova Iorque, ao som de “Someone to watch over me”, e a emoção da primeira dança invade o Paissandu em flashback.
E, apesar de todas as estrelas do Paissandu, e, apesar da beleza das imagens de Nova Iorque, Lira, por instantes, regressa a sua pequenina Campina Grande, e, em vez do incensado Zubin Mehta, em seu ouvido ressoa Ray Conniff, a música de radiola; em vez de Diane Keaton, à sua frente só havia Maria: tão longe, tão perto, tão pouca, tanta, Maria.
Antonio Morais Carvalho
é professor e poeta