Gostaria de pontuar alguns desses recantos que visitei e me fizeram dormir feliz, imaginando que minha cota de turismo estava plena:
Bath
Fomos de trem de Cardiff para Bath. Passada uma hora de viagem, de repente tudo ficou escuro. Percebi que havíamos entrado num túnel. Respirei fundo para não deixar minha claustrofobia me sufocar. Quando olhei para os lados, enxerguei uma parede colada à janela e nada do túnel terminar. Que montanha grande, exclamei! Que montanha que nada! Descobri, em seguida, que havíamos atravessado o imenso estuário do rio Severn, por debaixo d'água. Ai minha claustrofobia! Foram 15 ou 20 minutos de escuridão.
Bath é uma das mais lindas cidades inglesas, toda pincelada por resquícios dos romanos, que lá deixaram maravilhas, como: os Thermae Bath Spas; o Walcot Parade, do período georgiano, com arquitetura imponente e outras relíquias; a Bath Abbey, catedral de estilo gótico; jardins majestosos; a ponte Pulteney, de 1770, que cruza o rio Avon (sim, o mesmo rio de Stratford-Upon-Avon, a cidade de Shakespeare); muitos cafés lotados; lojas de fudges, antiques, cornish bakehouses e ruelas floridas para nos perdermos e nos acharmos a toda hora, como nos orienta o arquiteto Legorreta.
Encontrei a loja onde, há 11 anos, tinha comprado cartões de Virginia Woolf, Oscar Wilde, Isadora Duncan em que se lia: "Qualquer mulher inteligente que leia o contrato do casamento, e mesmo assim se casa, merece todas as consequências" (Any intelligent woman who reads the marriage contract, and then goes tinto it, deserves all the consequences). Ainda bem que os tempos mudaram desde as danças sensuais da dama descalça. Desta vez, comprei um cartão menos tenebroso, da musa do cinema do artista Hermano José, Greta Garbo, com a frase: "Será que tem alguma coisa melhor do que almejar por algo que se possa alcançar?" (Is there anything better than to be longing for something, when you know it is within reach?). Pois fiquei feliz em ter alcançado a felicidade desse sonho de um dia de verão.
O almoço aconteceu em um café francês, onde trabalhavam três garçons brasileiros que organizam um forró para inglês ver. Fazia um sol frio, com céu azul e uma atmosfera de alegria por aquele dia tão lindo. Mais tarde, tomamos o chá das 5 na casa mais antiga de Bath (1482), o lugar em que é servido o famoso pão de Sally Lunn. Saboreamos a receita de um tempo antes mesmo que Vasco da Gama houvesse descoberto o caminho das Índias. A arquitetura da loja é ponto de visita também, com suas paredes grossas, tetos rebaixados, quinas retorcidas e janelas típicas.
O pão realmente merece a fama, sem falar da geléia, do chá preto fumegante e do prazer de pisar naquele solo de assoalho com som abafado. Senti-me uma Tess of the d'Urbervilles, e cheguei a visualizar uma charrete na porta, e um destino (fate) não aprisionador e estóico, mas um destino como possibilidade de rememorar um passado fantasioso. Fizemos uma visita ao Jane Austen Centre, onde há uma exposição permanente com objetos que contam as experiências da escritora das ironias e das razões & sensibilidades em Bath. Lembrei da minha amiga Genilda e seus estudos sobre essa escritora tão perspicaz da sociedade Vitoriana e das angústias femininas. Fechei os olhos para visualizar as cenas de Emma, Mansfield Park, e Orgulho & Preconceito. No museu, rendas, livros, filmes, e a história dos costumes e dos enredos de Persuasão.
Narberth
cidadezinha que é considerada o coração rural da região de Pembrokeshire, na parte oeste do País de Gales. Ruas estreitas, lojinhas de bijuterias, antiguidades, artcraf, pequenas galerias, loja indiana (tem henna vermelha?), um café bacana, um pub tradicional e uma delicatessen com prateleiras de azeite extra virgem do chão ao teto. A pequenina cidade é conhecida pelo seu talento gourmet. Almocei uma salada deliciosa de queijo de cabra (hum hum!!!). Cabaceiras precisa aprender a receita!
Tenby
Uma praia com a cara da Cornualha, também na região de Pembrokeshire, famosa pelo porto cheio de barcos e suas casas em estilo Georgiano. O domingo estava frio, cinzento, mas, mesmo assim, havia muita gente na rua. Fomos passeando a esmo e demos de cara com uma casinha com uma placa: George Eliot (pseudônimo da escritora Mary Ann Evans) escreveu aqui seu primeiro romance. Uma foto – click! Ventava, e nas fotos estamos todas com o cabelo arrepiado – As garotas dos Morros Uivantes! Provamos crocs (sapato de borracha, tipo alemão/holandês Beirkenstock) de todas as cores, mas saímos de mãos vazias – milagre! Ali perto, uma galeria/papelaria de arte. Cartões dessa paisagem dos filmes ingleses de romance do século XIX. Na volta para casa, um curry "para viagem". Tudo apimentado. Tudo delícia.
Southerndown
Fica na região leste de Gales. Uma praia do patrimônio de Glamorgan, que tem a segunda maior maré do mundo, ou seja uma beira-mar imensa, com suas nervuras na areia, coberta de seixos (pebbles) cinzas aveludados. Trouxe um balde deles para misturar com os objetos de arte popular da minha sala. Sempre que eu olhar aquelas pedras macias, vou me sentir novamente A filha de Ryan. A beleza da enseada também se faz pelos penhascos, pelas trilhas e pelas ruínas de castelos. Passear nessa praia, onde já fui outras vezes, proporciona a sensação de esta em um cenário de filme. Cheguei a ver a mulher do tenente francês toda de preto sob uma chuva fina, e com um guarda chuva preto, com seus olhos fixos para o outro lado da margem, à espera de um amor que nunca chegava. Almoçamos num pub antigo, daqueles com o telhado de palha (thatched cottage), onde me deliciei com um típico sanduíche de bacon crocante, salsichas da casa, vinho tinto, morangos frescos e um café expresso. No jantar, uma guloseima feita com o carinho de irmã: couscous marroquino com verduras/legumes assados (erva doce, abobrinha, alho poró, mandioquinha). Um rosé gelado e um spounge de laranja. A felicidade até que existe!
Cowbridge
Localizada no Vale de Glamorgan, que parece nome das estórias de Harry Porter... ou talvez das Brumas de Avalon?. Fui a primeira vez nessa linda cidadezinha pitoresca, no sul do País de Gales, há mais de 34 anos. Encantei-me com as lojinhas sofisticadas (comprei uma bolsa de oncinha, antes de virar fashion, com a qual tenho ido às festas, desde casamentos aos desfiles do bloco Cafuçu). Admirei os wine bars e as balaustradas floridas de suas casas tão típicas, tão britânicas. Dessa vez, fomos numa ruela, a mesma de anos atrás, e tirei uma foto no mesmo lugar. Gosto de fazer isso – Repetição com Diferença! Lembro que, em 1975, visitando Londres pela primeira vez, estive na feira de antiguidades de Portobello, em Notting Hill, e lá tirei uma foto com um rapaz deficiente visual, que tocava sanfona. Dez anos mais tarde, por ocasião de uma outra visita, também no domingo, lá estava ele, na mesma esquina, com a mesma sanfona, mas com seus cabelos já brancos e encardidos. Apresentei-me e disse-lhe de onde vinha, e que o conhecia por meio dos meus álbuns de fotografias. Emocionado, ele me abraçou, tirou outra foto e tocou uma música só para mim. Já acreditava em acaso e aí fiquei perplexa com os encontros & desencontros dessa vida das não-coincidências.
Brecon
Um lugarejo escondido nas montanhas (Brecon Beacons) e à beira do rio Usk. No caminho um castelo erguido num penhasco, corredeiras e cheiro de mato. Fomos de carro e, assim, pudemos apreciar a paisagem, com um guia turístico particular, minha irmã Teca, que nos mostrava cada palmo por onde corria nas maratonas de que é adepta. Nesse cenário bucólico, avistei novamente Meryl Streep e seu personagem da Mulher do Tenente Francês, dessa vez, sentada no bosque a desmanchar os cabelos para o personagem de Jeremy Irons, que enlouquecia de desejo, já não sabendo mais distinguir a bruma tênue das fronteiras do que fosse ficção e realidade.
Acontecia em Brecon, naquele sábado de agosto, o Festival Anual de Jazz, com concertos ao ar livre e em tendas espalhadas na cidade. Uma espécie de FLIP da música. Entrávamos e saíamos das tendas, dançando ou cantarolando, estalando os dedos aqui e ali... Fazia calor, um sol forte, as pessoas animadas com suas canecas de chope e, pelas ruas, como é de praxe, aconteciam shows paralelos e alternativos. Um parque imenso com quiosques de hot-dogs, goulash, comida chinesa, indiana, e pessoas esparramadas em seus piqueniques, ao som de gaitas, de blues ou de uma nota qualquer. De repente um desfile, uma paradam um gingado. Barraquinhas com roupas e acessórios, camisetas do evento e uma outra casa coberta de ramas cor de vinho (seria o outono que já se anunciava?)…
Voltamos à noitinha. Quando chegamos em casa, meu cunhado estava a cantarolar música brasileira, enquanto cozinhava lentilhas com especiarias e servia mais um vinho tinto, com velas na mesa. Acho que o coletor de resíduos deve ter ficado curioso com aquela casa, onde todas as noites havia sempre uma garrafa de vinho seca no portão...
E de vinho em vinho, de palmo em palmo, de esquina em esquina, de chá em chá, de quiche em quiche, de paisagem em paisagem, de susto em susto, de desejo em desejo e de lugares em lugares, naquela noite fui percorrendo meu mapa, minhas (des)orientações e minhas chegadas e partidas.
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora