Esse evento de importância capital não ficou restrito aos relatos da história e da ficção – Plutarco, Tito Lívio, Ovídio. Muitas são as representações do rapto das Sabinas nas artes plásticas, dentre elas a de Rubens, com uma tela de 1635-1637, e as de Nicolas Poussin, que produziu duas versões, uma de 1634-1635, outra de 1636-1637. Particularmente, só tivemos acesso a uma tela com a representação não do rapto, mas da intervenção das Sabinas (1799), obra de Jacques-Louis David (1748-1825).
Pintor oficial de Napoleão, Jacques-Louis David é autor de obras de tema clássico, a exemplo de "O juramento dos Horácios", "Os litores portando os corpos dos filhos de Brutus" e "A morte de Sócrates". Como pintor neoclássico, David ficou no limiar do Romantismo, morrendo no início da inauguração desse movimento por Lamartine.
O quadro A intervenção das Sabinas retrata um momento particular no início da fundação de Roma, quando, cansadas da guerra entre Sabinos e Romanos, cujos maridos e sogros se matavam, as mulheres Sabinas resolveram intervir, proporcionando a paz entre as duas gentes. A nosso ver, David pintou o quadro com os olhos postos no texto do poeta latino Ovídio (43 a. C. – 18 d. C.), alusivo ao fato, que se encontra nos Fastos [1].
No Livro III dos Fastos, o deus da guerra, Marte, pela primeira vez chamado a uma tarefa de paz e de cultura, responde sobre assuntos do calendário latino ao poeta [2]. Roma era pequena e Rômulo vivia numa cabana, ambos cresceram e tocaram os astros [3]. No entanto, Roma não tinha mulheres nem sogros, pois os ricos vizinhos não acreditavam na sua descendência de Marte [4]. É quando Marte insufla em Rômulo o seu espírito de pai: tomar pelas armas, não pelas preces o que ele quer; Rômulo prepara a festa de Consus e rapta as Sabinas [5].
A guerra entre genros e sogros se alonga e as esposas se reúnem no templo de Juno, sob a liderança da nora do deus, Hersília, que as aconselha a uma iniciativa tão corajosa quanto piedosa [6]. Elas desarrumam os cabelos, vestem roupas de luto, em sinal de aflição e intervêm na guerra, separando as hostes de esposos e pais [7]. As mães Sabinas, desde então, celebram as Calendas de Março em homenagem ao deus Marte [8], momento, em que as mães do Lácio cultivam a fecundidade [9]. Marte ainda explica que sua mãe, a deusa Juno, ama as jovens esposas; a multidão das mães vem, então, celebrar sua festa [10].
Vejamos o trecho do poema, em que se dá a intervenção das Sabinas, entre os versos 215-228, em tradução nossa:
Já os exércitos se puseram de pé preparados para o ferro e para a morte, já o bastão augural houvera de dar os sinais para a luta, quando as raptadas chegam entre os pais e os maridos, e retêm os filhos no seio, caros penhores; quando tocaram o meio do campo com os cabelos esparsos, prosternaram-se, tendo posto o joelho na terra, e, como se sentissem, com doce clamor, os netos estendiam em direção aos seus avós os pequenos braços. Quem podia chamava o avô, então, enfim, visto, e quem dificilmente podia era coagido a poder. Caem as armas e os ânimos aos guerreiros, e, desviadas as espadas, sogros dão e recebem as mãos aos genros, e seguram as filhas louvadas e, sobre o escudo, o neto o avô conduz: este uso do escudo era mais suave.
Tendo apoiado e participado da Revolução Francesa, Jacques-Louis David concebeu seu quadro "Les Sabines arrêtant le combat entre les romains et les sabins" (1799), quando esteve preso, e o pintou em um momento crucial, como uma simbologia para a união da França em torno do ideal libertário, sobretudo após o período do terror, de 1793 a 1795. Logo em seguida, a revolução capitularia a Napoleão, que assumiria o poder, como Cônsul em vida, e depois imperador.
Um dos detalhes importantes do quadro é o fato de que a sua data se encontra escondida nele próprio, em meio à luta. Pode-se vê-la por trás da perna de Tito Tácio, numa espécie de lápide, que faz base para um altar, sobre o qual se ergue uma Sabina, levantando o seu filhinho e o expondo ao combate, como um modo de tocar a sensibilidade dos combatentes.
No quadro de David podem-se distinguir três planos: ao fundo vê-se uma luta que se trava no alto, para a defesa da Arx, a fortaleza que protege a cidade (hoje a basílica de Santa Maria in Aracoelli), resultando na conquista do Capitólio por Tito Tácio, por causa da traição de Tarpeia. Vê-se, nesse plano com destaque a rocha Tarpeia, para execução dos traidores. No meio, a luta já vem para a planície, onde se ergueria o futuro Fórum Romano, entre o Capitólio e o Palatino. Nesse plano intermediário veem-se as lanças levantadas em posição de combate, mostrando os batalhões prontos para a luta, até onde a vista alcança. Já no primeiro plano, observa-se a cena descrita e narrada, que se encontra em Ovídio.
Em nossa concepção, a fonte de David, no que diz respeito à cena principal, foi inspirada em Ovídio, tendo em vista a popularidade alcançada por esse poeta. Como pintor neoclássico e cultor dos princípios dessa escola, David nos dá uma visão do conjunto, englobando em uma única tela a guerra com a tomada do Capitólio, a sua expansão para a planície e a intervenção das Sabinas, constituindo assim uma visão de clareza, harmonia, equilíbrio e simetria.
O fato de aquela que se supõe ser Hersília e outras mais estarem com seus cabelos bem arrumados e não necessariamente recobertas de vestes lutuosas, atende às exigências dos preceitos da escola neoclássica. Por outro lado, Hersília como aquela que convoca as Sabinas à intervenção e sendo esposa de Rômulo, deve mostrar-se como tal, ainda que exiba a sua túnica com certo desalinho, deixando entrever suas formas, além do estado de excitação em que se encontra, pelo que se pode observar no mamilo enrijecido que transparece.
Olhando atentamente a cena central, podemos ver quatro mulheres prosternadas com o joelho no chão. Duas delas têm os cabelos desfeitos, duas delas têm as vestes mais escuras, como uma simbologia da dor e do luto. Uma quinta, à direita de Hersília e atrás dela, apesar de estar com uma túnica vermelha, cobre a cabeça com um pano mais escuro, demonstrando a sua dor. A aflição em seus rostos é patente. Podemos ainda constatar crianças que são alçadas e uma delas, no chão levantando a mão, conforme se diz no poema.
Em suma, é possível supor a leitura de Ovídio por David, não só pela cena da intervenção das Sabinas que ele relata, mas também pelo fato de que a opulência das mulheres, especialmente uma que mostra as suas tetas de mãe, outra, já matrona que reclama a nova condição de aceitação do fato ou a morte, expondo o seu peito às armas, dão sentido à fala de Marte, respondendo a nova invocação do poeta, para explicar-lhe por que as mães honram sua festa (a partir do verso 167, estendendo-se até o verso 258) e o porquê de as "Calendas de Março" serem em sua homenagem.
Sabemos ser muito difícil dizer com exatidão se David leu ou não Ovídio, mas o fato de o pintor ter feito seu beija-mão a Roma, onde permaneceu por cinco anos, leva-nos a imaginar que é algo muito provável. Não seria demais, apontar, ainda, que os dois últimos versos do trecho, que traduzimos e apresentamos — Laudatasque tenent natas, scutoque nepotem / Fert auus: hic scuti dulcior usus erat (e seguram as filhas louvadas e, sobre o escudo, o neto o avô conduz: este uso do escudo era mais suave.) —, entram em contraponto, por celebrarem a vida, com os versos 1141-1142 de "As Troianas" de Eurípides, em que o escudo de Heitor serve de túmulo para Astiânax, na dor da mãe e avó Hécuba. Mas isto é assunto para outro texto.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL