Tocar piano não é mesmo nada simples ou fácil; mui penoso é o estudo, requer árduo esforço e perseverança inabalável. Quanto mais estudamo...

Ingrata memória

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Tocar piano não é mesmo nada simples ou fácil; mui penoso é o estudo, requer árduo esforço e perseverança inabalável. Quanto mais estudamos, mais nos damos conta do nobilíssimo mister, do dominar a Arte de tocar esse instrumento que sobrepuja a escrita musical desde sua criação por volta de 1711, pelo italiano Bartolomeo Cristofori di Francesco.

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Bartolomeo Cristofori (1655—1731)
Há segredos para o esmero no toque pianístico; e há também dotações naturais, uma vocação inata que poucos têm. “Nem todo mundo pode ser um grande Artista, mas um grande Artista pode vir de qualquer lugar”: é a lição trazida na moral do filme Ratatouille. Entretanto, é difícil falar em reconhecimento pianístico, sobretudo em terras insólitas como as paraibanas. Nosso tempo não preserva identidades ou personas artísticas, não tem memória, e, portanto, renega a própria história.

Em tempos de hashtags, uma das mais usadas, expressão da moda, é a cerquilha #Gratidão; e, eis a pergunta: onde está a gratidão contemporânea para com os ilustres Artistas paraibanos de hoje e do passado? Aliás, o Brasil é um país que tem uma relação inversamente proporcional entre o número de grandes notáveis das Artes, e de uma população que os ignora solenemente.

A professora Vânia Camacho, em seu trabalho de doutoramento, atesta não só os registros de um passado de êxitos educacionais, como também, o consequente esquecimento e retrocesso atuais:


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A partir da observação desse universo, marcado por grandes lacunas no ensino musical e, especificamente do piano no interior do estado, me fizeram acreditar que o ensino [...] da música ‘dita clássica’ nunca havia ocorrido nessas regiões. Todavia, foi grande a surpresa quando [...] constatei que em um dado período houve um avanço enorme do ensino da música nas cidades interioranas a partir, principalmente, da instalação de colégios religiosos, especialmente católicos, presentes em todo o estado paraibano. O ensino [...] do piano fazia parte, ao que tudo indica, de uma cultura escolar desde os meados do século XIX e início do século XX.


A professora cita o Annuario Ecclesiastico da Parahyba do Norte, de 1919, organizado por Francisco Severiano de Figueiredo, em que se lê as ênfases de estudos àquela época: “instrução religiosa, leitura, caligrafia, línguas nacional, francesa e inglesa, aritmética, álgebra, ciências físicas e naturais, história universal, história do Brasil, geografia geral, geografia do Brasil, corografia, música vocal, piano, violino, bandolim, desenho, pintura, flores, trabalhos de agulha úteis e agradáveis”. No alto sertão paraibano, a exemplo de Catolé do Rocha, que chegou a possuir em seu Colégio Normal Francisca Mendes — instituição que existe até hoje, sem, no entanto, o mesmo empenho para com as Artes, como outrora —, nada menos que vinte pianos de armário em seu auge; e a doutora Vânia ainda traz para si uma indagação que estendo a todos os contextos possíveis de trabalho, amador ou profissionais, individual ou institucionais de nossos dias: “Como entender e atuar conscientemente no presente sem conhecer o passado?”.

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Colégio Francisca Mendes, Catolé do Rocha, PB Acervo da Escola
Pois bem, à essa pergunta, sobrevém-nos a responsabilidade da busca por referenciais. A capital paraibana viu nascer em seu solo, um dos maiores nomes da interpretação pianística de toda a América Latina. Refiro-me ao saudoso e notável Antônio Guedes Barbosa, a quem, infelizmente, não tive o privilégio de conhecer. E, ao referir-me à memória e trajetória artística desse ícone paraibano, não poderia deixar de mencionar o tenaz pirpiritubense Domingos de Azevedo Ribeiro que, são só sobre Antônio Guedes Barbosa se debruçou, mas, sobre a música de seu estado como um todo, tento feito muito mais pela memória do que as instituições atuantes na Paraíba, quer estatais, quer privadas. Itapuan Bôtto Targino, apresentando o livro Antônio Guedes Barbosa, O Homem e o Intérprete, cita matéria do extinto Jornal O NORTE – no qual cheguei a publicar série de resenhas sobre execuções instrumentais em 2008 em João Pessoa, e, lamentavelmente, o jornal fechou suas portas sem a preservação sequer de seu próprio acervo – feita por Ricardo Anísio de Carvalho, que assinava colunas de cultura, e com quem tive breve contato, já nos estertores daquele periódico. Nessa matéria, referindo-se à morte súbita do admirável pianista, há a constatação da ingratidão:

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Antonio Guedes Barbosa (1943—1993) IPB

A Paraíba chora a morte de um prodígio que nem conheceu direito. Desconhecido da maioria de seus coestaduanos, que sequer teve tempo e informação para sentir orgulho do pianista erudito, Antônio Guedes Barbosa, no anonimato das galerias dos paraibanos ilustres, brilhou e recebeu incontidos elogios de europeus e norte-americanos, pela sua inteligência e pelas leituras de compositores como Liszt, Chopin e Beethoven. As vezes que se apresentou em palcos paraibanos, mostrou virtuosismo diante das plateias não muito numerosas.


Na contramão dessa desmemória está o mais que louvável Instituto do Piano Brasileiro, na pessoa do amigo Alexandre Dias, que vem, pouco a pouco, disponibilizando as raridades entesouradas da música e dos intérpretes brasileiros em canal no Youtube. Lá acha-se a digitalização do Long Play antológico com duas obras-chave do repertório pianístico brasileiro. O álbum foi lançado em 1981, pelo selo Philips e produzido orgulhosamente no Brasil por Ezio Servolo, com distribuição da Polygram Discos. No “lado A”, Antônio Guedes Barbosa interpreta de forma arrebatadoramente personalista as Bachianas Brasileiras nº 4. Seus ressonantes graves imprimem um Villa-Lobos com a avassaladora pujança inerente de seu discurso tropical e florestal. A interpretação no Prelúdio é emblemática com o uso do pedal: Antônio mistura, ao fim, acordes que se aglomeram e se sobrepõem como em crescente adensamento, num raciocínio timbrístico, místico e apaixonado. O pianismo que se ouve é de uma verve, de uma entrega, de uma concentração única e tal, que a obra ganha uma dimensão de dilaceramento da respiração se for ouvida com a atenção que merece. O fatídico dó grave, em forte e acentuado, ao final do Canto do Sertão, mostra a compreensão do intérprete do sofrimento e da sina dos seus conterrâneos na seca terra que castiga e mata o gado, que seca os ribeiros e faz a macambira murchar e o juriti se mudar.

No uso da melodia recolhida em Itabaiana, de origem indígena – pelo símbolo da associação paraibana e de influência de Villa-Lobos em minha percepção, eu mesmo chego a utilizá-la em ciclo de Divertimentos para Piano – faz-se uma cantiga que vai do melancólico e lamentoso ao contundente e gingado na seção intermediária. É o paraibano cantando sua terra, pela criação do velho Villa. Ambas as obras foram rigorosamente pensadas para serem lançadas num álbum só, seja pela escolha das peças, seja pela união de detalhes interpretativos:
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Almeida Prado (1943—2010) Naxos
sonoridade misteriosa, lancinante que Antônio dá aos graves, por exemplo, une o argumento que esses dois baluartes da música no Brasil se deixaram embebedar, a Natureza. E, é na natureza do seu próprio coração que o verdadeiro Artista se encontra para de si deixar brotar o entendimento da vida, do entorno e do tempo.

O outro Antônio, o José de Almeida Prado, é uma esponja criativa. Tendo estudado com Olivier Messiaen, e tendo sido um profundo conhecedor de seus conterrâneos, Almeida Prado é fonte inesgotável de magia, mistério e inventividade. Rios é obra concebida entre os anos de 1975 e 1976 e foi encomenda feita pela Divisão de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores; num raro exemplo de quando as amizades concorrem para o bem e promoção da Arte nacional: a peça é dedicada a Antônio Guedes Barbosa e por ele foi estreada. É resultado do impacto do compositor a partir da leitura sobre os mitos dos índios Xingu, publicado pelos irmãos Villas-Boas. Os três movimentos são como que louvores cerimoniais – a sombra do Rude Poema é inegável! – e convidam o ouvinte a entrar em transe, como, certamente, Antônio Guedes entrou; é nítido o desejo dele em tocar, a vontade em trazer à tona cada nota, cada significante nota:

I. As águas de Canutsipém;
II. Jakuí-Katú, Mearatsim, Ivat, Jakuiaép, os espíritos que habitam o fundo das águas;
III. A descida das águas, e a formação dos rios Ronuro, Maritsauá e Paranajuva;

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Antigo Conservatório Paraibano de Música
Em tempos de esquecimento agudo, pois é do brasileiro o já crônico esquecer, é imperativo que falemos sobre a Arte Nacional. Que o paraibano aprenda a reconhecer os seus. Que não deixemos nossos biomas serem dizimados em sua abundante riqueza de fauna e flora, e, tampouco permitamos que se avassale a Arte única que dessa relação com o natural e o imagético brote; seja do folclore ou da alma indígena, seja do legado deixado por intérpretes autênticos, como Antônio Guedes Barbosa.

E eis que, numa tarde e noite de sexta-feira, em tentando fruir sob este álbum, sou assaltado por constrangedores e horrendos sons techno-funk e eletro-forró, ou forró-de-plástico, vindos de certa e insistente distância. Tal sequestro sonoro-mental escancara o preço altíssimo da atualidade paraibana a pagar, não só pela falta de reconhecimento de seus verdadeiros notáveis, mas, sobretudo, pela depreciação da educação e dos valores por ela mantidos, que dão sentido à manutenção da cultura artística e à empática energia gerada numa sociedade não-normótica e livre destas mazelas auditivas, intelectivas e anímicas...


Sam Cavalcanti é mestre em música, compositor, crítico e escritor

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  1. Samuel Cavalcanti ... contextualiza com total sapiência neste neste " Momento histórico/ critico!!
    o que é sua característica no saber musical!!! inerente ao à um autentico "Musicologo".
    Paulo Roberto Rocha

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  2. Muito obrigado, meu caro oboísta! Agora aguardo-te como intérprete de novas e entesouradas obras intocadas!

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