Gavroche é o espírito parisiense em forma de criança. Mas não uma criança qualquer. Gavroche é o que o francês chama de gamin, no seu primeiro sentido, de viver a brincadeira e as licenciosidades das ruas, com espírito crítico, gozador e libertino. Para a época de Hugo, introdutor da palavra na língua francesa literária, com Notre-Dame de Paris (1831) e Claude_Gueux (1834), gamin era termo da língua popular não digno de frequentar o vocabulário dos grandes escritores. Hugo associa definitivamente o vocábulo a Gavroche, personagem memorável de Les Misérables (1862). Tão memorável que repercutiu em nosso Cruz e Souza, no célebre soneto “Acrobata da dor” – “Salta, Gavroche, salta, clown, varado/Pelo estertor dessa agonia lenta...”

Paris, das ruelas e dos excluídos, e Gavroche se confundem, pensando ambos em como se pode subverter a ordem social injusta. E é isso que o mantém vivo, pois “respirer paris, cela conserve l’âme” (Idem, Capítulo VII). Além do espírito rabelaisiano, o gamin parisiense deixou-se penetrar, de algum modo, pela ironia e pelo anticlericalismo de Voltaire, sem ter vivido o suficiente para ler o iluminista. Vivendo no limite, ele é, no dizer de Hugo, uma espécie de Tântalo, aquele personagem mitológico condenado ao Tártaro – o inferno do inferno grego – a sentir fome e sede eternas, mesmo com água e comida à sua disposição, sem, no entanto, jamais poder alcançá-las. Os desejos inatingíveis desse Tântalo parisiense consistem em derrubar o governo e fazer recosturar sua calça (idem, Capítulo VIII).
As agruras fazem parte de sua experiência de vida, tornando-o amadurecido antes do tempo. Não vivendo com os pais, que sequer se preocupam com a sua existência, Gavroche tem como pouso o elefante da Bastilha, obra iniciada por Napoleão e, por motivos óbvios, não concluída. A Bastilha, símbolo da maior revolução que o mundo conheceu, cujo ideal libertário, igualitário e fraterno ganhou o mundo e os espíritos, mal consegue abrigar uma criança de rua, numa inacabada construção, sinal flagrante de desperdício de dinheiro público e desvio de seus objetivos.

Com onze ou doze anos, órfão de pais vivos, Gavroche conhece como ninguém o linguajar das ruas, o argot, e sabe se sair das situações. Os pequenos que acolhe na rua, sem saber que são seus irmãos, e leva para morar consigo no elefante são, no jargão das ruas, moutards, momacques, mômes, momignards, momichards, mions, mioches (crianças) (Parte IV, Livro 6, Capítulo II), enfim, crianças muito pequenas, que não têm o estatuto do gamin, como ele, ferreiro feito na forja diária do submundo. Professor, Gavroche ensina os pequenos esse linguajar, preparando outros gavroches: os policiais devem ser chamados de cognes; um alojamento deve ser dito piolle; a noite deve ser chamada sorgue; uma casa, bocard... Viver nas ruas é saber entendê-las e dar as respostas do que elas e seus habitantes precisam.

Dirigindo-se com os pequenos ao elefante, para que lá eles durmam e se sintam abrigados do frio, Gavroche vai resmungando por causa da intolerância de um barbeiro que os expulsara do ambiente quente e acolhedor da barbearia. Uma moça, ao ver o grupo passar em fila, ri. O garoto acha o riso uma falta de respeito e responde com um cumprimento irônico, atrás do qual se esconde uma ofensa: “– Bonjour, mamselle Omnibus” (Parte IV, Livro 6, Capítulo II, “– Bom dia, senhorita Paratodos”). Em latim, o ablativo de plural de omnis, “todo, toda”, é omnibus, com o significado de “para todos, para todas”, de onde surge a palavra “ônibus”, com o mesmo sentido. Ao chamar a moça que ri deles e dos pequenos de “Senhorita Paratodos”, Gavroche a atinge em sua honra, chamando-a de prostituta. É a defesa dos que vivem à margem.

Ils ne savent pas lire; tant pis. Les abandonnerez-vous pour cela? leur ferez-vous de leur détresse une malédiction? la lumière ne peut-elle pénétrer ces masses? Revenons à ce cri: Lumière! et obstinons-nous-y! Lumière! lumière! — Qui sait si ces opacités ne deviendront pas transparentes? les révolutions ne sont-elles pas des transfigurations? Allez, philosophes, enseignez, éclairez, allumez, pensez haut, parlez haut, courez joyeux au grand soleil, fraternisez avec les places publiques, annoncez les bonnes nouvelles, prodiguez les alphabets, proclamez les droits, chantez les Marseillaises, semez les enthousiasmes, arrachez des branches vertes aux chênes. Faites de l’idée un tourbillon. [...] Regardez à travers du peuple et vous apercevrez la vérité. Ce vil sable que vous foulez aux pieds, qu’on le jette dans la fournaise, qu’il y fonde et qu’il y bouillonne, il deviendra cristal splendide, et c’est grâce à lui que Galilée et Newton découvriront les astres.
(Eles não sabem ler; pior. Vocês os abandonariam por isso? Vocês lhes fariam de sua desgraça uma maldição? A luz não pode penetrar estas massas? Voltemos a este grito: Luz! e nos obstinemos nele! Luz! Luz! – Quem sabe estas opacidades não se tornariam transparentes? As revoluções não são elas transfigurações? Vamos, filósofos, ensinem, esclareçam, iluminem, pensem alto, falem alto, corram feliz no grande sol, fraternizem com as praças públicas, anunciem as boas novas, distribuam generosamente os alfabetos, proclamem os direitos, cantem as Marselhesas, semeiem os entusiasmos, arranquem ramos verde aos carvalhos. Façam da ideia um turbilhão. [...] Olhem através do povo e vocês perceberão a verdade. Esta vil areia que vocês pisam com os pés, que se joga na fornalha e que ali funde e que ali ferve, tornar-se-á cristal esplêndido, e é graças a ele que Galileu e Newton descobrirão os astros.)
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL