Conversar é coisa que as pessoas fazem há milênios, hábito tornado natural, e, sendo conversa amistosa, deveria ser sempre algo agradável, mas nem sempre saímos de uma conversa serenos. Há pessoas que conversam com alegria e descontração e ao deixá-las saímos com aquela sensação de leveza que nos ajuda a levar o mundo nos ombros. Outras pessoas há que tornam a conversa insuportável e a vida um tsunami: são as “carpideiras”. Parece que elas passam o dia catalogando, com apurado requinte, sabores de desgraça e, com sádica alegria, nos procuram para compartilhar esse banquete de pratos amargos e azedos que alegra suas papilas gustativas e despejam gastura em nosso estômago. Estas pessoas fazem parte daquele tipo de gente que, ao abrir o jornal, vai direto ao obituário, entra em velório de desconhecido e, quando nos encontra, quer atualizar o registo do cemitério conosco.
Não é à toa que se fala em “arte de conversar”, porque há pessoas que, além da conversa rica e agradável, imprimem e permitem um fluxo fluido e circular na conversa de tal modo que todos se sentem contemplados com a fala e têm prazer na audição. Mas há aquele tipo de gente insuportável com o seu interminável e monótono “monólogo-do-vaqueiro”, que não deixa ninguém falar – portanto, não quer conversa: quer tão-somente despejar sua compulsão à fala.
Quando estamos imersos em uma conversa agradável, seja ao vivo ou pelo telefone, o tempo se esquece da gente, o espaço some, e só as subjetividades, as emoções, a graça existem. Que linha abstrata e inconsútil consegue costurar esse instante de diluição de individualidades, colocando entre parênteses o intervalo natural entre alteridades? Por que isto não acontece sempre que duas pessoas conversam de modo descontraído e sem objetivo pragmático, mas apenas com algumas pessoas?
O que faz que a gente converse com tanta naturalidade, com tanta fluência com um amigo, um colega, às vezes até um mero conhecido, e seja tão lacunar, reticente, na tentativa de diálogo com um irmão, um pai, um filho? Certamente, o segredo não pode ser apenas o conteúdo, nem mesmo a vestimenta do conteúdo; não deve ser apenas uma afinidade cultural, pois conversamos com quem gostamos de conversar sobre coisas quaisquer: aquele time de botão, o antigo sorvete da Tropical, a inesquecível propaganda da calça Lee (do tempo em que a liberdade só existia no jingle da desbotada e libertadora calça), cartões postais, até sobre o presidente atual – qualquer besteira.
Em geral, as pessoas sentem-se mais à vontade para conversar, a conversa flui com mais naturalidade, quando conversam com pessoas com quem convivem há muito tempo, com quem têm intimidade, e aí se incluiriam, evidentemente, os familiares. Tenho, porém, alguns colegas que gostam muito de conversar, falam com muita fluência sobre vários temas, mas na hora de conversar com alguns familiares têm um surto vocal, viram gagos, atropelam o idioma como se estivessem falando num grego clássico, cuja aprendizagem tivesse sido iniciada há poucas semanas.
Ocorre de reencontrarmos um colega de infância ou mesmo um amigo, que ficou no passado, e, com duas ou três frases fabricadas com esforço, somos tomados por uma crise aguda de Alzheimer e todas as palavras somem. Bate uma angústia passageira, uma urgência de despedida, que o Alzheimer atenua e justifica, mas o ex-amigo se despede, levando consigo o alemão – e nosso universo vocabular se recompõe. Mas se o indesejado das conversas é um familiar, com quem temos de conversar toda semana, que Alzheimer podemos invocar para nos redimir da paralisia verbal?
Quando essa opacidade comunicativa se estabelece com algumas pessoas da família e lembramos quão fácil e agradável é nossa conversa com outras pessoas da família ou mesmo com alguns “estranhos”, somos invadidos por um forte sentimento de culpa. Até que ponto devemos nos penitenciar por isto? A culpa, se é que existe, é só nossa? É preciso ter a coragem de perguntar: por que somos obrigados a gostar de conversar com todos os nossos familiares?
Ter de telefonar ao menos uma vez por semana para aquele familiar que nos deixa mudos, repetir sempre os mesmos monossílabos e ouvir sempre as mesmas palavras, converte-se em um verdadeiro tédio, tormento ou angústia. Como ecoa aquele silêncio de arrebentar os tímpanos, pedaço intransponível de tempo escoando entre a procura de algo para dizer e a espera sufocante de qualquer fala do outro lado do fio! E como terminar o que, a bem dizer, nem sequer começou?
Na impossibilidade do que deveria ser uma despedida com afeto e saudade, surge, para salvar-nos da precipitação no abismo do nada, o secular clichê e toma as rédeas do que é quase só tarefa e ansiedade.
— “Deus te abençoe.”
— “Amém.”
Como dizia o poeta:
“Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio. Mesmo no silêncio e com o silêncio Dialogamos."
Será que aquele teu querido irmão, a quem visitas, invariavelmente, todos os domingos, às 12 horas, durante uns dez minutos de fio, dos quais uns 4 minutos arrastam-se numa dolorosa tartaruga de interminável silêncio, e que, se passas um domingo sem contato, ele inicia o próximo telefonema dizendo que nunca mais você ligou pra ele, aceitaria, pacífico, “teu melhor silêncio”?
Antonio Morais Carvalho
é professor e poeta