Quando, em sala de aula, digo aos alunos dar prazo aos céus por não ter concluído e sequer iniciado o Curso de Letras, e eles, entre atônitos e surpresos, me indagam o motivo, respondo: “Fui um livre atirador, um leitor veraz e voraz sem que, em momento algum, tivesse que prestar conta de minhas leituras aos professores, o que as tornou mais lúdicas e mais prazerosas”.

Antes, no curso ginasial, não via, como ainda hoje não vejo, nenhuma utilidade em decorar, por exemplo, os nomes dos afluentes das margens esquerda e direita do rio Amazonas, pois já vislumbrava, quem sabe, “a terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, o mítico Capibaribe, de Bandeira e de Cabral, enfim, os rios mais profundos, mais densos, mais caudalosos e perenes, porque extraídos da cabeceira, da nascente da linguagem.
Ora, mas a esta altura alguém pode questionar: e a poesia tem alguma utilidade? Não tem, certamente – e aqui me valho de um trecho de “A Banda”, de Chico Buarque –, para o “homem sério que conta(va) dinheiro”, mas possui, e muita, para quem conta as estrelas, embora caiba aqui uma ressalva, uma advertência: esse homem contemplativo, que sabe não só contar, mas também ouvir e compreender as estrelas, não deve ser confundido com um ser alienado e alienante, daqueles que, de tanto olhar para o céu e perscrutar os astros, findam por tropeçar nas pedras do meio do caminho e por caírem no fundo de um poço. Sob esse aspecto, “Um filósofo moderno, Hegel, comentou que as pessoas que riem dos filósofos que caem no poço não percebem que os filósofos, por sua vez, riem delas, que não podem cair no poço porque já se encontram no fundo dele desde sempre...”
Observem, por exemplo, que a lírica de Mario Quintana sempre prestou um tributo “às miudezas (ou às pequenas grandezas) do universo”, sem que, com isso, tenha subestimado o social que, na sua poesia, adquire uma conotação a um só tempo irônica e corrosiva: “O nome de Nabucodonosor é belo como um cotejo religioso. O triste é que os seus súditos, para abreviar, chamavam-no simplesmente de Bubu”.

Pois bem. Brincando com as palavras, através do humor, o poeta reedita o menino que, segundo a fábula, foi o único a enxergar e a gritar, a plenos pulmões, que o rei estava nu. E aí entra, também, a sinceridade da criança ainda não de todo afeita ou amoldada às conveniências do mundo adulto. Enfim, o desassombro do poeta em denunciar a empáfia e a arrogância dos poderosos de plantão é decorrente do seu olhar enviesado, inaugural, olhar que enxerga o que os outros não vêem. Ou seja, que o nome Nabucodonosor é majestático e que precisa ser posto ao chão letra por letra, como pedras de um dominó.
Poesia e criança. O que ambas têm em comum? Segundo Fernando Mendes Vianna, “A poesia é a infância amadurecida”. Já Wordsworth, por sua vez, diz que “O menino é o pai do homem”.
No caso da conceituação de Vianna, a palavra amadurecida possui um peso todo especial, pois atribui à poesia uma espécie de ingenuidade refletida, pensada, o que não combina com a criança, pois esta, apesar do olhar epifânico que lança sobre os homens, animais e coisas ao seu derredor, não possui ainda a linguagem com que expressar os seus sentimentos. O que somente vai possuir bem mais tarde, caso seja vocacionada para a poesia. E mesmo assim, a linguagem somente será conquistada à duras penas, depois de muitas e extenuantes leituras.

A maneira pela qual o irmão menor conceituou a cor-de-rosa se nos afigura como um “(...) lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro/ do invisível”. Ou seja, a boutade, o insight, não querem dizer, necessariamente, que o irmão maior seja um poeta, ou sequer que esteja fadado a sê-lo, mas, antes, que a frase surgiu à sua revelia.
Quando a criança transgride a linguagem, as normas lingüísticas e gramaticais, tudo leva a crer que isto somente ocorre porque ela é um mero aprendiz que, desaclimatado, pouco a pouco tenta apreender o mundo em que lhe foi dado existir. Portanto, diferente do Miró do poema de João Cabral de Melo Neto, ela não desaprende para quebrar paradigmas, para instaurar rupturas, pois o que soa como inusitado, como non-sense, decorre de um esforço inconsciente de se adaptar ao mundo. Em última análise, a criança erra para aprender. E muitas vezes errando, põe o mundo de ponta-cabeça, tal e qual o fazem, conscientemente, os bons poetas.
Não descarto a hipótese da existência de crianças que sejam, conscientemente, poetas. Daquelas que sabem o que dizem, a exemplo de Jorge de Lima, “menino impossível”, azougado, que, entre os seis e os oito anos, já começara a criar admiráveis mundos novos, a exemplo deste poema escrito quando tinha apenas sete anos de idade: “Eu queria saber versos/ Como o meu amigo Lau./ Nunca vi versos mais belos/ como ele sabe lá.// Trocava até meu carneiro/ meu velocípede sim/ sem saber os seus versos/ meu Pai que será de mim?/ Meu pai me bote na escola/ do meu velho amigo Lau/ quero aprender com ele/ versos e não b, a, bá!!!” Ou ainda deste outro, vindo a lume quanto ele contava oito anos: “Benedito criado do meu pai/A ele chamam diabo/ Por ser preto este rapaz/ Mas Benedito é meu amigo/Por isto eu o bendigo/E lhe digo muito ancho/Benedito você é um anjo”.
E deste, escrito aos nove: “Tenho pena dos pobres, dos aleijados, dos velhos/ Tenho pena do louco Neco Vicente/ E da lua sozinha no céu”.

Ainda bem que Jorge de Lima não se revelou apenas um menino prodígio, como tantas crianças cujos pais, mal os filhos escrevinham alguns “poemas”, cuidam logo de veiculá-los, de dar-lhes publicidade, abonando o precoce talento que, na maioria das vezes, desaparece tão rápido quanto um meteoro.
Na verdade, esses poemas do autor de “Invenção de Orfeu” já antecipam uma lírica que, posteriormente amadurecida, quando ele se assenhoreia dos seus instrumentos de trabalho – a linguagem, o ritmo, o som, as imagens, etc. –, vai se revelar portadora de um sentimento regional e universalista, sobretudo, depois dos conselhos de José Lins do Rego para que ele abdicasse da sua condição de ourives do verso, de parnasiano empedernido, de carteirinha, para engrossar as fileiras do modernismo nordestino. A partir de então, surge o Jorge de Lima sem amarras, sem freios, o Jorge de Lima de “Essa negra Fulô”, que desbanca, de uma vez por todas, o poeta que firmara o nome através de um soneto de fatura parnasiana, “O Acendedor de Lampiões”, que sempre teve um lugar cativo e de honra entre as antologias da época, inclusive na organizada por Osório Duque-Estrada.

Embora sobre a poesia com “alma de criança” de Manuel Bandeira, essas palavras do paraibano Olívio Montenegro podem ser utilizadas a propósito da lírica de Jorge de Lima, como de resto a respeito de todo verdadeiro artista – Chaplin, Miró, Zé Lins... – em cuja obra convivam o homem e o menino, o menino e o homem, desde que ela corrobore o princípio segundo o qual “A poesia é a infância amadurecida”. Sim, porque há quem escreva textos, principalmente os destinados às crianças, regidos pela senilidade de empregar, abundantemente, o diminutivo, como se o universo infantil fosse composto por uma legião de parvos, de atoleimados. Crianças, decidamente, exigem e merecem respeito.
Quanto à compreensão do que seja literatura infantil ou infantojuvenil, há controvérsias. A propósito, lembro quando o poeta Linaldo Guedes, à época editor do “Correio das Artes”, publicou nessa revista alguns poemas de minha autoria – que iriam, mais tarde, integrar o meu livro “Zoo imaginário” – considerando-os destinados ao público infantil.
O primeiro a se manifestar se opondo à opinião de Guedes foi o poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras, Ivan Junqueira, para quem “(...) o editor do ‘Correio das Artes’ se engana: estes cinco poemas da contracapa não se dirigem, em absoluto, ao público infantojuvenil, que não os entenderá em sua plenitude semântico-metafórica. Eles são tão bons e refinados quanto os que li de sua autoria, recentemente, na revista ‘Continente’. É que neles, meu caro Sérgio, há o que eu chamaria de uma certa ‘capsularidade aforismática’, digna dos grandes epigramistas...”.

Sergio Faraco, por sua vez, observou: “(...) pude ler o ‘Correio das Artes’, que tirou a bela edição em que és a personagem principal. Adorei os poemas feitos para os meninos que ainda somos”.
Dessas opiniões, a de Ivan Junqueira é a mais peremptória, a mais conclusiva e incisiva, no sentido de que os poemas publicados no “Correio das Artes” não se dirigiam, absolutamente, ao público infantojuvenil. A de Lêdo Ivo os considera, sim, destinados aos meninos de todas as idades, enquanto que Sergio Faraco os tem como poemas “feitos para os meninos que ainda somos”. Quer dizer: dos três, só o poeta alagoano considera que os poemas publicados no “Correio das Artes” têm como público-alvo não só os adultos como também as crianças.
Na entrevista que dei à época ao suplemento – ainda não havia adquirido o formato de revista que tem hoje –, questionado por Linaldo Guedes “Por que escrever (...) poesia infantil (...) depois de comemorar 25 anos” de atividades poéticas, respondi: “(...) Não creio que o meu livro atinja em cheio o público infantojuvenil, pois, quando muito, um ou outro leitor dessa faixa etária pode se dar conta da sutileza e da ambiguidade dos poemas”.
Por aí já se vê o quanto este é um terreno minado, movediço, capaz de suscitar opiniões as mais divergentes, ainda mais se acrescentarmos à do crítico e contista João Batista de Brito, segundo a qual, mesmo não entendendo o conteúdo do poema, a criança pode ser atraída por ele em função de seu ritmo, de sua musicalidade, tal e qual ocorre – concluo eu – com alguns textos em que Cruz e Souza, na esteira de um dos preceitos mais caros ao Simbolismo – “A música antes de tudo” –, negligenciava, intencionalmente, a relação causa e efeito, criando – dentro do poema – uma atmosfera inconclusa, cambiante, que muito mais sugere do que diz.
Embora não diga coisa com coisa, o soneto “A Uma Deusa”, cuja autoria é atribuída ao poeta maranhense Luís Lisboa, atrai o leitor pelo non sense e pela musicalidade que o revestem: “Tu és o quelso do pental ganírio/ Saltando as rimpas do fermim calério,/carpindo as taipas do furor salírio/nos rúbios calos do pijón sidério.//És o bartólio do bocal empíreo/ Que ruge e passa no festão sitério,/Em ticoteios de partana estírio/Rompendo as gambas do hartomogenério.//Teus belos olhos, que têm barlacantes,/são camensúrias que carquejam lantes,/nas duras péleas do pental balônio./São carmentórios de um carcê metálico/de lúrias peles, em que buza o bálico/em vertimbáceas do cental perônio”.

A musicalidade do poema pode, sim, atrair a atenção da criança, mesmo que ela não assimile e tampouco compreenda o conteúdo da mensagem emitida pelo eu lírico. Por último, algumas vezes a musicalidade dos versos se converte numa espécie de trilha sonora da infância, assim como determinadas parlendas, mesmo sem pé nem cabeça, trazem o menino de volta como se fossem madeleines crocantes embebidas no ontem da nossa existência.
Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL