“Escavação e transmutação são ingredientes fundamentais da minha produção e se fundem a interesses por temas como corpo, passado, memória, saudade, morte, relação público-privado e oprimido-opressor... Cada obra resgatada assume aqui a tarefa de complementar outra para compor um corpo só, um arquivo quimérico ou uma corda do tempo feita de fios de várias idades e diferentes matérias.”
José Rufino
José Rufino
Há dois anos, José Rufino, artista plástico paraibano, escritor, professor de Artes da UFPB e UFPE, autor do livro "Afagos" — ou geólogo, paleontólogo, jardineiro — ou artista simplesmente, e tantas outras coisas —, participou da 5ª edição dos Debates Psicanalíticos "Arte e Trauma". Fui assistir-lhe e sou grata por ter mergulhado nessa noite do saber.
Rufino, professor que é, preparou uma palestra irretocável e eloquente sobre o mistério da criação, sobre a linguagem, enfocando o seu próprio processo criativo. Para tanto, mergulhou em assuntos diversos, como o papel do artista pesquisador, sua família, infância, estudos, formação, interesses, vida em Recife, referências a outros artistas, vida política dos familiares, mágoas, tabus, rastros, engenhos, pegadas, eurekas e epifanias. Concluiu a exposição com o seu trabalho sobre os Desaparecidos Políticos, acreditando ele que isto remeteria ao passado, quando, na verdade, infeliz e ironicamente, seria falar do presente.
“O artista trabalha para a linguagem, para estabelecer paradigmas!”. Com slides, percorremos as artes rupestres, Stonehenge, paisagens bíblicas, até chegarmos em Van Gogh, Antônio Dias, a fotografia, o cinema e outras artes contemporâneas que não mais desejam representar a realidade, mas um conjunto de novas experiências/fragmentos e relações... no lugar da obra em si. O artista e o coletivo: o ateliê, o crítico, o mercado (que agora terá que entender, provocar e se adaptar) e toda a cadeia, a visão sistêmica do criador x observador, que se contrapõe ao artista isolado.
Logo foi exibida "A Fonte", de Duchamp, transgredindo todos os conceitos... até hoje! O deslocamento do objeto, do olhar, do óbvio para a sensualidade de um outro corpo. Uma bicicleta que gira fora de um guidão, mas agora num busto. O busto do desvio. Uma coisa que é outra coisa, e mais um monte de ressignificados.
E Rufino lançou o susto: “A criação artística é livre?”. Como formular isso tendo em vista a tradição e a ruptura?. A questão da autoria; a pulsão da criação é livre? — “A ideia torna-se uma máquina de fazer arte” — citou Sol LeWitt. "Será que a Arte perdeu a sua capacidade de criar? Provocar?" — instigou o palestrante.
O artista quer ser revolucionário. Mas também quer ser assimilado. Eis a questão! Essa revolução vai ampliar o simbólico e o mercado vai à reboque. Exemplos como o Projeto Coca-Cola de Cildo Meireles, a calça Jeans e o caminho que percorreu (desde os operários americanos até os dias de vitrine de hoje) ilustram algumas das ideias discutidas.
A artista/performer feminista cubana Ana Mendieta unia seu corpo com a terra para tornar-se uma extensão da natureza. Rufino utiliza a "criação e a cura", o "eu lírico", o "poético" para falar de assunto que sangra. Frida Kahlo utilizou o corpo para falar das suas dores. E seguimos interessados naquele caminho sem fôlego.
Enquanto o artista falava das cartas familiares e todo o seu trabalho ruminante de escavações literárias/simbólicas/poéticas, fiquei a pensar na instalação "Intolerância" de Siron Franco, que visitara em São Paulo, alguns anos antes, trabalho que me marcou muito. Aconteceu no Memorial da Liberdade (antigas salas do DOI-CODI). Uma amiga — que viveu os tempos da ditadura em São Paulo, tendo sido presa e torturada — ficou incomodada com o título. “Como tortura é intolerância? Isso é minimizar! Intolerância é algo menor do que se viveu nas galerias desse lugar sangrento” – exclamava ela com todas as suas razões. Hoje, olhando em perspectiva, até acho forte o termo "intolerância", pois é nele que tudo se inicia.
Fiquei transtornada ao me deparar com uma montanha de sapatos des-encontrados. Gastos. Maltrapilhos. E mais uma outra de bonecos do tamanho de gente, vestidos como se gente fossem. Os "corpos" amontoados, jogados em valas, tenebrosos. Quase tive ânsias, de tão fortes esses corpos me pareciam; esgotados e no mais sub-humano que os humanos podem estar; subjugados por seus algozes. "Tortura Nunca Mais!" — pensei naquele momento. Hoje, esse slogan se perde nas fake news! Um horror que se anuncia sorrateira e agressivamente.
Rufino seguia a falar dos seus métodos, processos, persistências, listas, arquivos, desafios, obras inimigas e riscos. Pensei, então, na complexidade dos seres humanos. Observei o artista inquieto, que trabalha com o passado, com a memória e com o esquecimento, com o corpo e o espírito, a opulência e as faltas. Sua arte já vem nas profundezas das Terra. Uma carta não é mais uma carta! E a arte ressignifica sim. É uma única forma de se viver a catarse e redimensionar um trauma. No filme Desejo e Reparação (2007), só a literatura salva tanta mentira irreversível quando se tem a morte. A artista francesa Sophie Calle também tomou emprestado uma carta do companheiro que rompia o amor, e criou uma instalação: "Cuide de Você". Exorcizando sua dor em público e assim, quem, sabe, superando-a. Calle, Duchamp, Rufino, assim, refazem dores, fontes, mágoas, lágrimas, rancores, para poderem transcender significados anteriores e lançarem outros olhares e leituras de um fato, de um desejo, da morte e principalmente da vida.
"Plasmatio" foi uma das exposições na Bienal de São Paulo que deu foco à palestra. Recentemente, tivemos a oportunidade de ver uma outra exposição: "Limbo", resultado de um processo de resgate de obras que estavam guardadas, perdidas, esquecidas, desprezadas, inconclusas ou apenas à espera de uma chance para aflorar pelas brechas. É também repleta de caminhos, peças, cronologias e perdições, talvez daquilo que tem nesse espaço suspenso: o limbo de nossa existência.
Em 30 anos de trabalhos fortes, enigmáticos, com rasgos de vida na frente e no verso, percebi que conhecia quase nada daquele artista escavador, tão diverso, perfeccionista e determinado, conforme as minhas impressões. Um pesquisador da alma, dos rastros de sua família, não só da família autobiográfica (que ele se transveste pelo nome do avô (para ter ainda mais legitimidade dessa escavação do passado), mas da família ampla da humanidade. Um pesquisador de um período histórico, como neste tempo em particular, da Ditadura Brasileira.
Rufino encerrou dizendo: ”Artistas são como bola de soprar! Podem estourar!" — Fiquei de olhos bem abertos durante quase três horas ouvindo-o discorrer com tanta propriedade sobre seu trabalho, sobre Arte, sobre História e sobre os enigmas dos processos criativos... dele e de outros.
Aplausos sempre!
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora