
Diante da descoberta do incesto com o filho Édipo, grande erro contra os deuses (Sófocles, Édipo tirano, versos 1263-1264), Jocasta escolhe enforcar-se. A indefinição do combate de heróis e cavalheiros, entre Ajax e Heitor, leva-os a finalizar a luta, trocando presentes entre si (Ilíada, Canto VII, versos 303-304). É sobre a espada recebida das mãos de Heitor que o herói escolhe morrer, para redimir a sua manía, a loucura enviada pelos deuses, que o fez confundir os rebanhos com as tropas de Agamêmnon e Menelau, furioso que estava contra os dois Atridas (Sófocles, Ajax, versos 906-907). Para Jocasta e Ajax, tirar a própria vida é a punição que poderá levar à remissão do erro cometido e à restauração da honra perdida.
Antígona enforca-se, escolhendo a própria morte. Condenada por Creonte a ser sepultada viva, por infringir a lei dos homens, a nómos, visto que ela procurou fazer valer as determinações da divina Thêmis, as Thémistes, dando sepultura, ainda que simbólica ao irmão Polínice (Sófocles, Antígona). Diante da noiva morta, Hemon, filho de Creonte se mata. Por sua vez, Eurídice, sua mãe, ao saber da morte do filho, também se suicida.

Todos os personagens aqui elencados são heróis e heroínas épicos ou trágicos e, de certo modo, com um parentesco com as divindades, os únicos seres imortais. A morte aparece, portanto, com diversas faces: como prêmio ao herói, meio para coroamento de uma causa, autopunição para reparação de um erro, punição por desobediência às leis, dor pela perda de um ente querido...

Caso emblemático é o do velhote, personagem de Luciano, em O diálogo dos mortos. Não tendo qualquer razão para viver – não tem parentes, não tem amigo, não tem do que viver, não tem onde morar, não tem saúde –, ainda assim, ele resiste em subir na barca de Caronte e fazer a travessia para chegar ao Hades, dando como resposta ao filósofo Diógenes, um dos passageiros da barca, a mesma que Ifigênia, cheia de graça, viço e riqueza, dera a seu pai, Agamêmnon: é doce ver a luz do sol (Diálogo XXII). O Hades, como o descreve Hesíodo (Trabalhos e dias, versos 152-155) é escuro, mofado, nebuloso, frio. Melhor suportar as agruras e estar debaixo do sol, na luz que impulsiona a viver.
Dentre as tantas mortes representadas literariamente, lembraríamos ainda Inês de Castro, morta por intolerância e discriminação social (Os Lusíadas, Canto III, estrofes 132-135), Lindoia que se deixa picar no seio por uma cobra, ao achar que o seu amado Cacambo morrera (Basílio da Gama, O Uraguai, Canto VI), morte de que resulta um belíssimo decassílabo digno de Camões – Tanto era bela no seu rosto a morte! –; Moema que se afoga, ao tentar acompanhar o navio em que o amado, Diogo Álvares Correia, o Caramuru, parte para a Europa (Frei de Santa Rita Durão, O Caramuru, Canto VI, Estrofe XLII). Nenhuma delas, no entanto, tem a beleza da morte de Albine, em La faute de l’abbé Mouret, romance de Émile Zola (1875).

Serge, que a doença fizera esquecer a sua vida clerical, ainda que amando Albine, de repente, acorda para a sua função sacerdotal. Cheio de culpa, reconhecendo como pecado, o único de sua vida, o amor carnal com a moça, vê-se impelido a voltar aos Artaud e retomar a sua vida religiosa. A moça tenta levá-lo de volta ao Paradou, mas o seu retorno, apesar de amar Albine, não apresenta a mesma vida e as mesmas sensações. Mouret retorna, de modo definitivo, aos Artaud, recebendo, dias depois, a notícia da morte de Albine, de quem ele faz a missa de defuntos.

“Ali, foi uma última volúpia. Os olhos completamente abertos, ela sorria no quarto. Como ela tinha amado neste quarto! Como ela ali morria feliz! Nesta hora, nada de impuro não mais lhe vinha dos Amores de gesso, nada de perturbador descia mais das pinturas, em que membros de mulher se estendiam. Não havia, sob o teto azul, senão o perfume sufocante das flores. E parecia que este perfume não fosse outro que o odor do amor antigo de que a alcova permanecera sempre morna, um odor crescido, centuplicado, tornado forte, de que ela respirava a asfixia. Era este, talvez, o hálito da mulher morta ali, há um século. Ela se achava feliz, por sua vez, neste hálito.
Não mexendo mais, as mãos juntas sobre o seu coração, ela continuava a sorrir, ela escutava os perfumes que cochichavam na sua cabeça que zunia. Eles lhe tocavam uma música estranha de odores que a adormecia lentamente, muito suavemente. De início, era um alegre prelúdio, infantil: suas mãos, que tinham torcido as verduras odorantes, exalavam o ardor das ervas pisadas, contavam-lhe suas corridas de crianças no meio das selvagerias do Paradou.

Escolhendo o quarto para morrer, em cujo teto se viam Amores pintados em volta de uma mulher em pose sensual, Albine procura lembrar a sua felicidade, com Serge Mouret, em meio à natureza, compondo a sua melodia de amor e morte. Anunciada, inicialmente, com a alegria infantil, própria da personagem ainda adolescente, a música vai-se tecendo suavemente em tons aflautados, que se fazem acompanhar de cânticos e coro. Tudo é calculado de modo lento, causando um prazer pela felicidade da morte em que a jovem se afoga docemente. Não faltam o bordado da tecedura musical ou o pizzicato, ressaltando com discrição a trilha da morte. A languidez do coro das rosas completa a harmonia do conjunto, com o ritual olente-musical se encaminhado para o seu apogeu – o coro que se eleva, a vibração sonora que explode, as fanfarras anunciando o grand finale. O soluço de Albine, que se eleva acima do coro, é o momento solo, como epílogo dessa sinfonia. A única nota triste acontece no dia da missa de corpo presente. O tom do dobre de finados, semelhando a entrada grave dos metais, adequa-se perfeitamente a uma missa de réquiem:
“La cloche sonnait toujours, sans se presser, d’une façon navrée.”
“O sino soava sempre, sem se apressar, de uma maneira consternada.”
Livre III, Chapître XVI
Albine compõe uma sinfonia alegre e vibrante, morrendo feliz, por guardar consigo o ideal puro do amor inocente a que se entregou; aos que ficaram, a consternação por uma morte tão precoce, dolorosa, batendo monótona no pausado dobre de finados; a Mouret, o clamor do De profundis, em busca da serenidade em Deus:
"De profundis clamavi ad te, Domine;
Domine, exaudi vocem meam.
Fiant aures tuæ intendentes in vocem deprecationis meæ"
Domine, exaudi vocem meam.
Fiant aures tuæ intendentes in vocem deprecationis meæ"
“Das profundezas, eu clamei a ti, Senhor;
Senhor, ouve com clareza a minha voz.
Teus ouvidos tornem-se voltados para a voz da minha deprecação”
Senhor, ouve com clareza a minha voz.
Teus ouvidos tornem-se voltados para a voz da minha deprecação”
No ar, a incompreensão de que fomos feitos para amar, fato que nos credita a servir a Deus, jamais nos incompatibiliza.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL