Jovem ainda – e não sei por que cargas d’água –, imaginava o cronista, o cultor do gênero crônica, à imagem e semelhança de um camelô vociferando a céu aberto, vendendo o seu produto: o cotidiano, que é da matéria do dia a dia que se nutre a crônica, quer o camelô grite a plenos pulmões, quer se feche em copas, introspectivo, intimista, conversando com os seus botões, consigo mesmo, embora procure fazer com o que ele diz, reverbere, repercuta, entre os que se aglomeram inamovíveis ao seu derredor.
Às vezes, na esteira do camelô da lírica bandeiriana, eis o cronista tal e qual um “demiurgo de inutilidades” a vender bugigangas, vidrilhos, mixarias, nonadas, sempre desprezado pelos que não sabem ver a utilidade das coisinhas miúdas, dos sobejos de Deus, das “pequenas grandezas do universo”. É que, do aparente monturo, o bom escritor muitas vezes extrai um inexaurível filão poético: “Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí... Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo” (Busca, de Mario Quintana).
É também desse “filhotinho de estrela atirado no lixo” que se alimenta o bom cronista, pois a crônica somente sobrevive à vida efêmera dos jornais quando revestida de literariedade; caso contrário, mal as notícias se tornam velhas, mal perdem o seu prazo de validade, elas e os jornais servirão apenas para embrulhar um molho de celgas, conforme observou Julio Cortázar em O Jornal e suas metamorfoses, texto inserto no livro Histórias de Cronópios e de famas.
Fez bem Adhailton Lacet Porto em selecionar parte dos seus textos difundidos no já extinto jornal Correio da Paraíba para publicá-los no livro Os Dizeres do Quiçá, com o selo da cajazeirense Arribaçã, que vem se destacando no mercado editorial paraibano. E essa transposição se assenta ou se justifica a partir da necessidade do escritor trocar “a tenda precária e cigana por uma casa sólida e mais duradoura”, ou seja, o jornal pelo livro.
Os Dizeres do Quiçá é quase todo sobre autores e livros, que Adhailton os possui a mancheia e em tal quantidade que eles, os livros, já tramam mover uma ação de despejo contra o bibliófilo, o escritor e o juiz.
Pois bem. Nesse volume, Adhailton escreve com conhecimento de causa e propriedade sobre muitos autores, entre eles, Manuel Bandeira, Drummond, Rubem Braga, Clarice Lispector, Maura Lopes Cançado e Breno Acioly, os dois últimos, embora portadores de sérios problemas psicológicos, responsáveis pela fatura de textos saudáveis, cheios de vigor, incompatíveis com a enfermidade que os devastava. E isso na medida em que sabiam distinguir as “esquizofrênicas” vozes interiores das quais se nutre todo verdadeiro artista das vozes esquizofrênicas propriamente ditas. Cumpria a ambos, ainda, administrar/reelaborar as vozes enfermas, dando-lhes um tratamento consentâneo à realidade da obra ficcional.
Mas além do Adhailton observador do gabinete, da biblioteca, do que palmilha e compulsa as vertentes livrescas à sombra das estantes acesas, existe o Adhailton que sai à rua e propaga o cotidiano do Varadouro, microcosmo de uma João Pessoa que, de tão pequena, “cabia inteirinha num só olhar”.
No caso, no olhar do menino Adhailton, que açambarcava a Ponte do Baralho, a Praça da Pedra, as águas encarapeladas do rio Sanhauá, o manguezal, enfim, muitos outros acidentes geográficos, pessoas e coisas, já intuindo, quem sabe, que “tudo acontece para terminar em livro”, mais exatamente nesse Os Ditos do Quiçá, de leitura tão prazerosa.
Sérgio de Castro Pinto
é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL