O mito da mulher perfeita foi criado pelos trovadores. Como a sociedade feudal era extremamente machista, e lá a figura feminina não decid...

Sobre a mulher ideal


O mito da mulher perfeita foi criado pelos trovadores. Como a sociedade feudal era extremamente machista, e lá a figura feminina não decidia nada (a não ser, por exemplo, com que plantas aromáticas iria lavar os pés do marido), era necessário compensar essa inferioridade dando a ela contornos ideais. Nas cantigas, a mulher não é a escrava do cotidiano – é a senhora, ou a “mia senhor”. Esse tipo de culto se limitava ao plano da arte, claro; no dia a dia, a discriminação continuava a mesma.

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Mulher com um Arminho, 1490 / Leonardo da Vinci
Do trovadorismo a imagem da mulher ideal passou ao Romantismo, que lhe acrescentou traços de santidade e morbidez. Em vez de “senhora”, ela virou santa, diva, anjo. Além de adquirir esse aspecto espiritualizado, apresentava-se pálida, clorótica, enfermiça. Freud a considerou uma representação da morte.

Imagem da morte ou não, o fato é que os homens a perseguem. Como não a encontram, pensam que ela não existe. Engano. A mulher ideal existe, sim. Só não a encontramos porque, no momento em que a achamos, ela se torna real. Daí...

É possível conhecer a mulher ideal mesmo que ela, acercando-se de você, não fale nada. Ou melhor: sobretudo se não falar nada, pois falando ela pode quebrar o encanto. Dirá coisas prosaicas como “nasceu uma espinha no meu rosto”, “ontem vomitei aquela buchada” ou “sou fã de Michel Teló”.

Existe a teoria de que não encontramos a mulher ideal porque, sendo o mundo muito grande, ela pode estar a milhares de quilômetros de onde vivemos. É possível que alguém more no Brasil e sua mulher ideal esteja, por exemplo, no Kuwait, namorando um sheik ou coisa parecida. A maioria dos homens tem que se contentar com a mulher viável, possível, ao alcance da mão (e de outras partes do corpo, é claro). Felizes são aqueles que nascem onde sua mulher ideal se encontra. Mas dizem que, quando isso acontece, alguma circunstância a faz mudar de lugar.

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Mulher com Vestido Azul, 1931 / Amrita Shergil
Que características procuramos na mulher ideal? Compreensão infinita, tolerância absoluta, beleza perene. Ela deve ser irrepreensível, não repreensiva, e estar sempre pronta para o amor mesmo que tenha passado o dia à beira do fogão ou limpando o cocô das crianças.

Existe um teste simples para você saber se a mulher com quem pretende casar é mesmo a ideal (embora haja algum paradoxo nisso; ninguém se casa com a mulher ideal. Ela existe para ser objeto de uma grande paixão). O teste é: não compareça a um compromisso combinado, saia com amigos em vez de sair com ela, esqueça quando ela aniversaria, diga que a sua mãe (e não ela) é a pessoa mais importante para você. Se ela quiser matá-lo depois de ouvir coisas como essas, é porque não se trata da mulher ideal. Se apenas botar uma cara feia, aproveite, pois você não vai encontrar outra que reaja de forma tão branda.

A mulher ideal, como todos os mitos, foi criada para se constituir em referência. Lembra outro mito, o da “mulher fatal”, devoradora de corações, com quem a maioria das outras mulheres gostaria de se confundir. Não a rejeitemos, pois a função dos mitos é tornar suportável a realidade. Como, afinal de contas, se contentar com a mulher possível sem imaginar que em algum lugar do mundo se encarna aquela miragem? E que ela só não chegou até nós por um capricho da sorte?


Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor


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