Fugindo de Javert, Jean Valjean invade o terreno do convento do Petit-Picpus-Saint-Antoine, na pequena rua Picpus, onde viviam enclausuradas as bernardinas da adoração perpétua. Lá, ele encontra Fauchelevant, por ele ajudado em uma ocasião anterior (Parte I, Livro V), trabalhando como jardineiro (Parte II, Livros V-VI).
Salvo momentaneamente da perseguição, Jean Valjean precisa arranjar um jeito de sair do convento, para entrar novamente, passando-se por irmão de Fauchelavant, deixar Cosette como interna e ali trabalhar como ajudante de jardineiro. A única forma é sair dentro de um caixão de defunto, que deveria levar o corpo da madre Crucifixion, morta ao raiar do dia.
A madre Innocente, superiora do convento, quer enterrá-la por baixo do altar, contrariando a lei. Para isso, ela pede a ajuda de Fauchelevant que, além de jardineiro, é também coveiro. Para que a morta pareça estar dentro do caixão, o plano é enchê-lo de terra. Assim, ficcionalmente, cria-se uma situação que permite Jean Valjean se evadir do convento. Se a madre Innocente decide burlar a lei, Fauchelevant decide burlar a madre, preenchendo o caixão, não com terra, mas com o nosso herói.
Há risco de Jean Valjean morrer sufocado, pois ele deve ser enterrado, com a ajuda do coveiro do cemitério Vaugirard, e depois desenterrado. Não há outra solução, no entanto. Fauchelevant, preocupado com a situação, pergunta a Jean Valjean o que aconteceria se ele tossisse ou espirrasse, quando estivesse dentro do caixão. Nosso herói, sempre determinado, responde-lhe com segurança e clareza: “Quem foge não tosse, nem espirra” (“Celui qui s’évade ne tousse pas et n’éternue pas.”, Parte II, Livro VIII, Capítulo IV).
Esta contextualização é necessária para que entendamos a nossa crítica à série, em 4 capítulos, Les Misérables (França, Itália, Estados Unidos, Alemanha e Espanha, 2000), adaptada do romance de Victor Hugo por Didier Decoin e dirigida por Josée Dayan, tendo no elenco Gérard Depardieu (Jean Valjean), John Malkovich (Javert) e Christian Clavier (Thénardier).
Consideramos essa série uma das melhores adaptações da obra, tendo em vista que o tempo de duração, 6 horas, dá uma boa margem para se contar a história de um romance copioso, como é o caso de Os Miseráveis. Reconhecemos a dificuldade das adaptações e, mais ainda, o fato de que as linguagens romanesca e cinematográfica são diferentes.
Por outro lado, seria purismo de nossa parte esperar uma fidelidade total na adaptação. No entanto, consideramos também que há adaptações de situações que só complicam a trama. A caracterização da personagem Toussaint como homem, na série, é um bom exemplo disso. No romance, Toussaint é uma moça velha, salva por Jean Valjean do hospital e da miséria. Na série, Toussaint é um homem mudo, que esteve na prisão com o nosso conhecido personagem.
Pode parecer implicância criticar essa transformação de uma personagem feminina em uma masculina. Não é. Isto fere a estrutura da narrativa de Hugo. Não esqueçamos nunca que todo texto é uma estrutura e se alguma peça da estrutura é trocada, acaba comprometendo a verossimilhança interna.
O narrador deixa bem claro o porquê da escolha de Toussaint como doméstica: “une fille [...] qui était vieille, provinciale et bègue, trois qualités qui avaient déterminé Jean Valjen à la prendre avec lui” (“uma moça [...] que era idosa, provinciana e tinha dificuldades no falar, três qualidades que determinaram Jean Valjean a tomá-la consigo.”, Parte IV, Livro III, Capítulo I). Estas qualidades são fundamentais para quem está se escondendo e busca discrição.
No caso de Toussaint como homem, o comprometimento da condição de fugitivo de Jean Valjean é claro. Mesmo que o personagem seja mudo, a sua condição de ex-presidiário e ex-colega de Jean Valjean falam por ele. Além disso ele é forte e careca. O que chamaria mais atenção em Paris, ainda que no resguardo da casa da rue Plumet, uma moça bem madura, com deficiência na fala, e provinciana, ou um homem mudo, forte e careca?
Há, portanto, uma questão estrutural dentro do romance, que não deve ser esquecida: a necessidade de discrição e de anonimato. Jean Valjean se esfuma no ar, encurralado por Javert e seus esbirros, numa rua sem saída, em Paris, galgando um muro enorme, levando consigo Cosette, pulando para dentro do convento Picpus, onde permanece anos sem sair.
É essa fidelidade à estrutura que nos leva a outro episódio dentro da série. Durante uma festividade, uma alta autoridade da magistratura visita o convento e Jean Valjean tem uma altercação sobre justiça, com esse senhor. A cena não ocorre no romance, pois o nosso personagem, como ajudante do jardineiro Fauchelevant, de quem se faz um falso irmão, evita que as pessoas o vejam. Tudo o que Jean Valjean deseja é a obscuridade, o anonimato, nos anos em que Cosette está como interna do convento. Não ser visto ou notado é fundamental para ele, que tem em seu encalço o inspetor Javert, a persegui-lo obsessivamente.
O que nos parece é que o adaptador e o diretor da série projetam no personagem o seu próprio ativismo social. Hugo era um homem reconhecidamente engajado na luta pela justiça, ainda que não fosse necessariamente de esquerda, ele sabia que ter consciência da justiça social não é prioridade de partidos políticos.
Ao longo do romance, o escritor vai disseminando suas ideias contra as injustiças sociais, a ponto de Os Miseráveis ser um dos maiores romances de toda a literatura mundial sobre o assunto, mas não as coloca na boca de Jean Valjean. O personagem é de pouco falar e de muito agir; ele procura ser justo não por palavras, mas pela ação, como faz quando se entrega para salvar alguém de uma injustiça. É o caso do pobre miserável, conhecido como “le père Champmathieu”, confundido com Jean Valjean e que está prestes a ser condenado à prisão em Toulon, o lugar horrível onde nosso herói passara 19 anos, pela tentativa frustrada do roubo de um pedaço de pão.
Valjean, nessa ocasião, encontrava-se na cômoda posição de prefeito de Montreuil-sur-Mer, atendendo pelo nome de Monsieur Madeleine. Ele se desloca até Arras, a tempo de revelar sua identidade perante o júri de Champmathieu, por não ter como ficar em paz consigo próprio, caso um inocente fosse condenado em seu lugar (Parte I, Livro VII). Se ele tivesse se omitido, estaria livre de Javert para sempre, mas não estaria livre de si mesmo, de sua consciência. Atento, talvez, às lições platônicas, Victor Hugo sabia que a Justiça começa quando a buscamos e a encontramos dentro de nós mesmos.
O pensamento em busca de justiça contido em Os Miseráveis tem três fontes: o amor ao próximo, de Jean Valjean; a obsessão doentia de Javert pelo cumprimento estrito da lei; a ação violenta dos revolucionários da Turma do ABC, simbolizada nas barricadas de 1832, contra o rei Louis-Philippe. Os revolucionários são mortos pelas forças da monarquia; Javert se suicida, diante do conflito de não poder mais perseguir quem lhe salvou a vida. A única busca que resulta em algo é a de Jean Valjean, que aprendeu, desde cedo, a partir da transformação operada em si pelo Monseigneur Myriel, o bispo de Digne, que palavras não tornam uma pessoa justa, mas as suas ações:
“Il sentait qu’il touchait à l’autre moment décisif de sa conscience et de sa destinée; que l’évêque avait marqué la première phase de sa vie nouvelle, et que ce Champmathieu en marquait la seconde. Après la grande crise, la grande épreuve.” (Parte I, Livro VII, Capítulo 3)
“Ele sentia que tocava o outro momento decisivo de sua consciência e de seu destino; que o bispo marcara a primeira fase de sua nova vida e que este Champmathieu marcava a segunda. Após a grande crise, a grande provação.”
“Ele sentia que tocava o outro momento decisivo de sua consciência e de seu destino; que o bispo marcara a primeira fase de sua nova vida e que este Champmathieu marcava a segunda. Após a grande crise, a grande provação.”
Ações coerentes com o que se pensa e se prega, ainda que em prejuízo de si mesmo. Discursos belos, eloquentes, inflamados e idealistas caem bem em estudantes revolucionários, como Enjolras. Jean Valjean fala pouco, como já dissemos, pouco discursa, mas age o suficiente para livrar uma cidade da miséria, um inocente da cadeia, uma órfã da exploração e um jovem da morte.
Nosso herói relutara em ser prefeito de Montreuil-sur-Mer, para não chamar a atenção sobre si. Por insistência da população, que o tinha como um bom administrador aceitou, com reservas, o cargo. De imediato, atraiu a atenção de Javert, prontamente desviada pelo caso do père Champmathieu. Jean Valjean deu a sua lição de coragem e justiça ao se revelar, mas também aprendeu que não deveria mais chamar a atenção sobre si, se quisesse ficar longe das garras inflexíveis de Javert. Jamais, portanto, ele iria altercar com um magistrado.
Quem se evade não tosse e nem espirra...
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL