Um arrebatamento literário após uma peregrinação de sofrimentos ao desvendar o homem e da terra dos sertões brasileiros. Euclides da Cunha mergulhou no interior nordestino com uma visão e retornou com um novo olhar. Consegue, em que pese a proximidade histórica com os fatos narrados, criar com estilo literário, mas também como precisão documental, uma obra-prima sobre um capítulo sangrento da história brasileira.
Munido de vasto conhecimento armazenado ao longo da vida, cobriu, como jornalista, a Guerra de Canudos para o Jornal O Estado de São Paulo em 1897. "Os Sertões" é publicado em 1902, apenas cinco anos depois daquela luta. Foram só cerca de dois meses vivenciando o desconhecido mundo da vida e da morte nos rincões baianos. Quem lê a obra fruto dessa permanência tem a sensação que o autor viveu muitos anos naquela região, tamanho o elevado grau descritivo e de percepção de tudo que lá ocorreu.
Euclides da Cunha teve a capacidade de mergulhar na seca, na vegetação da caatinga, de enxergar o que se lhe apresentava aos olhos, porém, também conseguiu ir além, penetrar na alma dos contendores, dissecar os fenômenos diversos da sociedade daquele Brasil de muitos brasis.
A leitura foi mais lenta no início devido às muitas descrições minuciosas da primeira parte de Os Sertões, em que o autor coloca o leitor/viajante do tempo e da cultura no ambiente sertanejo. Euclides da Cunha utiliza-se de armas científicas elevadas e conhecimentos adquiridos como engenheiro militar. A flora, a fauna, o relevo, o clima, a seca, os sertões nordestinos são descritos como um acurado senso de justeza.
"À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros aspérrimos rebrilham, estonteadoramente - ofuscantes, num irradiar ardentíssimo..." revela Euclides da Cunha. E segue preciso:
"Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre - um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente - e todo este calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombrosa...".
"Os Sertões" segue para o que, para mim, é seu ponto mais elevado. O encontro de Euclides da Cunha com o homem e a terra sertanejos. Em que pese o autor deixar-se enveredar pelo racismo, apresentando o mestiço brasileiro como um ser inferior (fica aqui a visão positiva de redescobrir que o homem é falho, o autor erra, é humano, principalmente ao falar do próprio homem), ele percebe todas as virtudes do ser que brota naquele aparente desprovido de riquezas e belezas, mas tão cheio de valores que se revela para os que observam com atenção e vontade de entendimento.
Para além da emblemática frase "O sertanejo é, antes de tudo, um forte", Os Sertões alerta: "A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário". E mais adiante é arrebatador na descrição: "O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acabreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias".
Por estes sertões de Euclides da Cunha surgem o jagunço, o cangaceiro, o retirante, o vaqueiro... E em meio deles o Antônio Conselheiro, nem santo nem herói, um dos muitos conselheiros deste Nordeste dos sertões, místico, cru, valente e rude, crente, temente a Deus e aos mistérios dos céus e das terras. Capaz das mais vis violências, disposto aos gestos mais devotados de respeitos e bondades. Surge o bruto e o manso, a fera e o santo, o homem e o menino, tudo misturado.
Euclides da Cunha abraça o mundo. O livro é o colocar em palavras os sentimentos, o contato com o novo mundo, vivenciado naqueles dois meses de "sangue, suor e lágrimas" pelas caatingas baianas, para citar Winston Churchill.
E depois as batalhas. Aparenta que Euclides esteve presente em todas elas, tamanha a riqueza de sua reconstrução. Os choques, as bravuras, as figuras, os reveses, os engodos, os sangues, os corpos... em meio à macambira, à coroa de frade, ao mandacaru, ao leito seco do rio, às escarpas, às pedras. A fúria é descrita com a paixão do literato, mas com o rigor do olhar jornalístico e com o zelo do historiador.
Magnífico é encontrar pelas palavras euclidianas o homem que aprendeu a viver naquela terra, compreender os contrastes dos brasis e aquele que apenas escolheu a região para tornar-se efêmero, enterrado ao olhar encurtado, mas disposto a luta bravamente pela sua sobrevivência, pelo que acredita. E esses homens estavam nos dois lados das trincheiras, atrás e embaixo das pedras, arremessando-se entre a vegetação espinhenta dos sertões e até ao encontrar o destino numa cova rasa ou permanecer largado no meio da caatinga para secar embaixo de um juazeiro observando a secura do sol e do solo.
E ao final misto de tristeza e alegria ao reencontrar a atualidade há mais de um séculos. Os sertões presentes de ontem e hoje. Grato por desbravar Os Sertões de Euclides da Cunha. Gostaria de tê-lo encontrado há mais tempo nas minhas leituras, banhado-me dessa riqueza literária e histórica ainda nos tempos colegiais. Mas o tempo é sábio, ou apenas um enganador mais esperto que nós humanos, o que não deixa de ser sabedoria.
Clóvis Roberto é jornalista e cronista