Ao ler a série de contos de “Confissões de um Anjo da Guarda” (Bertrand Brasil, 2008), de Carlos Trigueiro, autor de outras obras marcantes, como o “Livro dos Desmandamentos”, “O Clube dos Feios” e o “Livro dos Ciúmes”, voltei a me encantar com seu estilo denso, amargo, enxuto, sarcástico, e a me intrigar com o que acabei percebendo ser um de seus sestros de notável artífice da palavra: o uso recorrente da enumeração como forma de ampliação visual e conceitual dos relatos.
Enumeração:
Acho que todo mundo conhece o poema “Isso é aquilo”, do livro “Lição das Coisas”, produto de Drummond já maduro, onde ele se limita a uma longa fila de versos que começa com “o fácil o fóssil / o míssil o físsil” e termina com “O cudelume Ulalume / o zunzum de Zeus / o bômbix / o ptyx”. Cada palavra colocada ali tem uma relação sonora com as demais, porém sempre com outro sentido, provocando, pelo acúmulo, um efeito poético extraordinário.
Em Águas de Março, Jobim segue a mesma trilha:
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o Matita-Pereira.
Trigueiro diz, de seu anjo Mahlaliel, que ele se viu obrigado a abrir mão de “trajes, acessórios, espaços, regalias, imagem, invisibilidade, segredos, reputação, poderes, armas e artimanhas”. Mais adiante, especifica: “Recolheram-me asas, vestes, halo, chancas, alabarda, sambuca e aquelas nuvenzinhas precursoras do skate”.
Às vezes Trigueiro me passa a impressão de alguém que faz escrita automática, como a dos surrealistas e dadaístas, ou como o Kubitschek Pinheiro, em suas crônicas paraibanas. Sexo dos anjos? “Hoje tem anjo macho, anjo fêmeo, anjo frígido, anjo esterilizado, anjo siliconado, anjo de programa e os que não estão nem aí para referências sexuais”. A relação dos que Mahlaliel já custodiou?: “profetas, bruxas, rainhas, centuriões, bárbaros, filósofos, diplomatas, reis, conquistadores... e plebeus, bandidos, políticos, jornalistas, desocupados, pintores, músicos, juristas, escritores, grafiteiros, funcionários públicos e os precursores dos blogueiros”.
Para se disparar essa metralha vocabular, há que se ter imaginação fervilhante, claro. O recurso, além de abrir a narrativa para uma infinidade de roteiros colaterais, de repente, noutros pontos, dá a elas uma velocidade frenética. No segundo conto, por exemplo, “Miguel enviou o currículo para agências de empregos, head-hunters, consultorias, seguradoras, financeiras, bancos, imobiliárias. Não obtendo resposta, fez promessas para os santos protetores de negócios, rezou, acendeu velas, jejuou, arquivou a libido”. ]
No conto “Obsessão”, o personagem Peterson, que é engenheiro, “se sentia realizado em canteiros de obras, regendo conjunto de bate-estacas, gruas, serras, tornos, empilhadeiras, soldadoras, e sentindo cheiro de cimento, argamassa, cola, tinta, suor de operários, lidando com mestres-de-obras mais sabidos do que mestres”. Essa ironia, machadiana, é exemplar em “O Jornalista”:
“O Mercado é sensível a corrente de ar, vírus de computador, boatos, enchentes, manchetes de jornais, licitação públicas, escutas telefônicas, prêmio de loteria acumulado, horóscopo...”
Numa conversa a respeito de “Confissões de um Anjo da Guarda” que tive com o professor de literatura brasileira da UFPB – poeta Sérgio de Castro Pinto – perguntei-lhe o que lhe lembrava esta declaração do Carlos Trigueiro na estória “Clínica para Normais”:
“A distância custou-lhe vinte e oito libras, três quartos de hora e meia dose de paciência”.
- Ora, Machado de Assis no capítulo XVII do “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.
Machadiano. Carlos Trigueiro é machadiano, claro. Observe estes trechos do capítulo XIII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:
“... a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las.”
“Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas.”
“Um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória.”
“Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostras, barba raspada; vejo-te bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho.”
A coisa vai longe.
A marca de Carlos Trigueiro, porém, está na exasperação desse expediente. Na forma e no conteúdo. No capítulo 21 do “Livro dos Desmandamentos”, por exemplo, há um parágrafo antológico:
“Sob o império dos atos institucionais, qualquer vacilo, deslize ou equívoco no andar, falar, rezar, cantar, escrever, tocar, pensar, respirar podia acabar mal. Um gaguejo podia ser interpretado como linguagem subversiva codificada. Daí, vinte e dois mil, setecentos e quarenta e oito gagos desapareceram sem terminar o que iam dizer. Outra barbaridade sucedera àqueles que, por causa de um tique nervoso, piscaram na hora errada: nove mil, setecentos e setenta e sete ficaram caolhos.”
Veja-se este excerto do capítulo LXVII do mestre fluminense, em “Quincas Borba”:
“Estirado no gabinete, evocou a cena: o menino, o carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto irresistível.”
Agora veja ação semelhante, desenvolvida num conto de “Confissões de um Anjo da Guarda” – “Anjos Exterminadores” – cujo título, por evocar uma das obras-primas de Buñuel, trai a influência do cinema nessa exacerbação da técnica machadiana. Aí, “o menor C.P.F., vulgo Papelote, sem anjo da guarda”, sobe, depois desce o morro na mesma carreira de assaltante em fuga, e eu chamo a atenção para a velocidade da cena obtida pela enumeração, o... pinturesco de tudo que nela se menciona, a carga cinematográfica dessa disparada de fotogramas:
“Correu, correu, dobrou, direita, esquerda, correu, correu, subiu a escadaria do morro, subiu, saltou vala, pulou muro, mureta, atalhou daqui, dobrou dali, pulou barranco, bicicleta, macumba, chutou cachorro, lata de lixo, vazou birosca, barraco, derrubou porta, pulou janela, cerca, cercado”, etc, e, na página seguinte, a volta: “correu morro abaixo, saltou vala, valeta, pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa, vela de sete dias, garrafa de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo, gaiola de curió, pardal esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu, desceu, atalhou, e correu, correu, correu....”
Genial
Em “Memórias da Liberdade”, criado por Trigueiro no “alvorecer dos anos 1980”, “em Madri”, e que saiu aqui pela 7letras, dei de novo com a técnica da enumeração, tão perfeita quanto antes:
- Passei por coisas, lugares, pessoas. Passei por vivos, mortos e mortos vivos. E fui passando. Passei por matas, águas e glebas. Passei por dunas, desertos, sertões. Passei por campinas, cerrados, montanhas. E fui passando. Passei por tumbas, palácios, pirâmides. Passei por santos, espectros, dragões. Passei por esfinges, aedos, gurus. E fui passando. Passei por nevadas, tormentas, procelas. Passei por nuvens, fumos, poeiras. E fui passando. Passei por legiões brancas, verdes, azuis. Passei por damas, valetes, coringas. Passei. E fui passando.
A enumeração volta na página 136, quando ele fala dos assuntos do Rio, “no último quarto dos anos cinquenta ou limiar dos sessenta:
- Bossa-nova, trocadilhos, Brigitte Bardot, sapato sem meia, aprender violão, rendez-vous, ´cinquenta anos em cinco´, seca no Nordeste, juventude transviada, jogo do bicho, bloco do Bafo da Onça, maconha, Sputnik, vestidos tubinho, rock´n roll, lambreta...
Aí arranjou emprego num sanatório, onde – nova enumeração - “era possível encontrar Napoleão, algum centurião romano, Robin Hood, líderes políticos e sindicais, advogados do diabo, fantasmas perambulantes, pacatos alienados aquém do tempo e além do espaço.(...) Paranóicos, catatônicos, psicópticos, maníacos, alcoólatras, oligofrênicos...”
Trigueiro/Machado. Lembra-me Rafael assumindo a musculatura dos personagens de Miguelângelo e o sfumato de Leonardo. Woody Allen assumindo as encucações de Bergman.
Manet pescando o impressionismo muito antes da hora, de Velásquez.
É assim – mesmo que nada haja de novo debaixo do sol - que tudo vive cheio de novidade.
W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta