Anos atrás, suspendi uma iminente mostra na galeria Gamela, para surpresa de Rosely Garcia.
- O que houve?!
- Está faltando alguma coisa nesses meus quadros e não vou expô-los assim.
Voltei à literatura, olhando a toda hora aquelas telas nas minhas paredes, com angústia. Até que... percebi que aqueles quadros todos somente funcionariam juntos. Faltava-lhes, individualmente, ... densidade.
Doei, então, o lote à sala da COEX, da UFPB, com o compromisso do Fernando Abath, seu administrador, de mantê-lo sempre... como uma instalação intitulada: Ando Muito Confuso.
Mas ao fazer o papel do Senhor X, num episódio-piloto rodado por Dowling na Biblioteca Central da UFPB, em cima de uma história de Georges Perec, tive o desprazer de ver algumas daquelas minhas telas agora dispersas – com sua vacuidade - em várias salas, a instalação desfeita pelo substituto de Abath.
Densidade.
Sua falta foi – paradoxalmente – o grande tema dos quadros de Edward Hopper durante a vida toda. Passei a prestar mais atenção neles depois de ver, no Museu Thyssen-Bornemisza de Madri, a tela em que uma solitária mulher jovem, aparentemente cansada, tem os olhos parados, num quarto de hotel. Hopper capta, noutro quadro, o vazio que já senti tantas vezes entre duas sessões de cinema, e que Bráulio Tavares define muito bem, num de seus extraordinários artigos, que cito de memória:
- É a expectativa difusa de que algo miraculoso, impossível, começará a acontecer quando as cortinas se abrirem, algo maior que a vida real, e com o poder de fazê-la parar durante duas horas.
É por essa densidade que a senhora solitária espera, e que vamos encontrar numa obra-prima da comédia, como Quanto mais quente, melhor, de Billy Wilder, nos quadrinhos de um Batman cabisbaixo e sombrio, de Frank Miller, no Gonzaga Rodrigues de A Mulher da Foto, num Dom Sertão, Dona Seca, de Sitônio Pinto.
A angústia da criação é o reverso dessa, da senhora. É a que está justamente na operação capaz de obter espessura de conteúdo e forma que a tirará do nada. Angústia insaciada que travou minha mostra na Gamela e que – aparentemente resolvida - acabou inútil para a COEX.
E quantas vezes vi essa tensão dar em nada trabalhando no setor de criação de agências de publicidade. É curioso como existe o suspense do criador no acabamento de um romance, tanto quanto no fecho de um comercial de 30 segundos. É curioso como foi catártico o momento em que vi o quanto uma câmera U-Matic, de TV, se parece com uma metralhadora, e fiz um líder sindical encapuzado voltá-la pro espectador e dizer “Mas agora temos uma nova arma: a televisão!”
Ou aquele em que o tenor Vianey, no grupo com máscaras do carnaval de Veneza, canta o "Largo al factotum" (“Abra caminho para o faz-tudo”), do Barbeiro de Sevilha, cantando que “se você for um dos dez a comprar primeiro / seu apartamento no Firenze ou Venezia, / vai pra Itália com acompanhante, / grátis!”, mas vi muitas vezes ideias rejeitadas pelo cliente ou pela própria agência, justamente pela falta da densidade buscada.
Certa vez, o grupo de amigos fanáticos por Mozart – Burity, Kaplan, Yerko, Luiz Carlos, Dr. Paulo Maia – não gostou quando – ao assistirmos em DVD a um dos trinta concertos para piano e orquestra do Amadeus, eu disse: “Esse foi puramente burocrático”. Mas é verdade. O próprio Bach, obrigado a apresentar nova cantata toda semana, nem sempre se saiu essas coisas todas. Eficiente, sempre, claro. Miguelângelo deixou inúmeras esculturas inacabadas, certamente porque percebeu que acabariam mal.
Não é fácil.
Conta-se que Schubert – cuja timidez impedia de acercar-se de Beethoven – ousou entrar na casa dele depois de sabê-lo morto... e se chocou ao ver as partituras intrincadas de tantas correções, pois tinham marcante aparência de fácil concepção, como aquela torrente de variações das quatro notas iniciais da Quinta Sinfonia.
O título para este texto poderia ser Agonia e Êxtase – como no romance de Irving Stone e no filme de Carol Reed sobre Miguelângelo. Foi terrível, para o Buonarroti, deixar de esculpir – atividade com a qual se identificava – pra pintar o teto da Sistina, por exigência da densidade que o Papa Júlio II queria também lá em cima!
Em 1980, a artista plástica Fayga Ostrower foi convidada, pela Encadernadora Primor S/A, do Rio de Janeiro, a ministrar um curso de arte para os operários da sua fábrica, e disso nasceu um trabalho estupendo chamado Universos da Arte. Bendita ansiedade da encadernadora, que acabou por saciar também a minha!
Todo trabalho marcante exige um empenho acima do humano e, quando nosso superego não faz isso, o resultado só aparece com esses agentes externos a nos infernizar. Por sacarem, ao seu redor, essa maldita falta... de densidade!
W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta