O personagem François Mouret, de La conquête de Plassans (Émile Zola, A conquista de Plassans, 1874) diz: “moi, je m’en lave les mains maintenant” (“eu, eu lavo minhas mãos a esse respeito, agora”, Capítulo III), fingindo um desinteresse sobre o que faz o abade Faujas, seu inquilino, embora esteja ardendo de vontade de espionar a sua vida. Desinteresse ou fingido desinteresse. Esse é um dos significados que a expressão “eu lavo minhas mãos” tomou, ao longo do tempo.

Jesus fora condenado pela multidão. Pilatos tentara interceder a seu favor, não vendo que ele tenha cometido qualquer crime, expresso na pergunta “que mal fez ele? (tí gàr kakòn epoíēsen)”. Ele lava as suas mãos, não porque nada fez para tentar salvar Jesus, mas pela insanidade da população ali presente. Como governador, Pilatos tem a obrigação de manter a paz pública e não interferir na religião local. A sua atitude não é a de quem não demonstra interesse com o que está acontecendo, mas a de quem tentou agir para chegar a um bom termo e não conseguiu.
Nós, que escolhemos a violência em lugar do Amor, vivamos, pois, com isto até que consigamos aprender com os nossos errosO mais importante em toda essa situação é o que Pilatos diz concomitantemente à lavagem de suas mãos: “Sou inocente deste sangue. Vós vereis” (athōiós eimi apó tou haimatos toutou. Humeis opsesthe, 27, 24-25). O gesto de Pilatos, para além da indiferença, desdém, desinteresse ou mesmo resignação, deve ser entendido como ritualístico. O verbo empregado (aponízō, apenípsato), significa “retirar lavando”, “lavar afastando-se de”. O que Pilatos quer retirar ou de que ele deseja se afastar? A resposta é clara: do sangue inocente derramado. Pilatos faz uma lustratio, um ritual de purificação ao lavar suas mãos, para, diante de seus deuses, não ser contaminado com aquele sangue.
No texto em latim, a utilização do verbo lauo, lauĕre, com seu sentido de purificação, é mais precisa – lauit manus coram populo, dicens: Innocens ego sum a sanguinis iusti huius: uos uideritis (“lavou as mãos diante do povo, dizendo: Eu sou inocente do sangue deste justo. Vós tereis visto.”). Esse verbo tem um parentesco etimológico com o verbo grego loúō, cujo sentido é lavar, purificar e também batizar, assim como o verbo latino pode ser utilizado para designar o batismo, essa imersão que se faz para lavar os pecados.
De certo modo, Pilatos está atento ao conselho de sua mulher sobre Jesus, chamando-o justo (dikaíōi) e dizendo para não ter nada com ele (27, 19). Não ter nada com ele significa não ser o responsável pela sua condenação. Os judeus, por sua vez, chamam para si e para seus descendentes a responsabilidade do ato: “o sangue dele caia sobre nós e sobre os nossos filhos” (tò haima autou ef’ hēmas kaì epì tà tékna hēmōn, 27, 25).
A grande lição desse episódio é que não devemos procurar culpados para a morte de Jesus, uma vez que ela estava determinada como uma missão que ele deveria cumprir no mundo carnal. Há responsabilidades que foram assumidas por aqueles que o condenaram. Jesus veio ensinar, entre outras coisas, que somos responsáveis pelos nossos atos.

Nós, que escolhemos a violência em lugar do Amor, vivamos, pois, com isto até que consigamos aprender com os nossos erros, tornando nítida essa distinção e sabendo, diante das consequências, o que realmente significa “seja feita a Vossa Vontade, assim na terra como no céu”.
No mundo em que vivemos, alguém dizer que lava as mãos não tem nada de ritualístico e purificador. No mais das vezes, trata-se de uma fingida indiferença ou de uma birra por ter sido contrariado na sua vontade suprema e inquestionável.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL