Em 1980, um dos mais importantes músicos brasileiros, que presumia ter 55 anos de idade, morando, há anos, em Pasadena, na Califórnia, onde se estabelecera como professor, decidiu realizar uma viagem ao sertão de Pernambuco, para tentar esclarecer uma dúvida que o perseguira até então: quando e em que lugar nascera e qual era mesmo o seu nome. Em depoimento de 1992, para o Museu da Imagem e do Som/MIS, no Rio de Janeiro, ele relata:
Eu me sentia como um órfão, sem saber direito o meu nome, nem quando nasci. Parecia uma criatura numa pedra no meio do mar, com as águas batendo, como se fosse as pessoas perguntando: ‘Quem é você? Qual o seu nome? Quando você nasceu? Onde você nasceu?’, e eu não sabia de nada.
Acontece muito mistério na vida de uma pessoa que não tem muito recurso, ou melhor, quase nada, naqueles sertões bravios lá do Nordeste, e eu fui um deles [...]
Ajudado por três ou quatro pessoas, comandei a operação de busca do registro. Cerquei as datas de 1920 a 1935. Eu estava com a saliva seca, quase perdendo a esperança, quando alguém achou o registro.
Descobriu, enfim, que nascera, como ele mesmo diz no seu depoimento, “entre os preás e os mocós”, na zonal rural de Bom Nome, distrito do município pernambucano de São José do Belmonte. Na descoberta, tomou conhecimento, também, que o seu nome que, até então, sempre grafara como Moacir, fora anotado pelo escrivão como Muacy e que o Santos, o nome de família que ele vinha usando até aquela data, não aparecia no registro nos sobrenomes dos seus pais.
Desde muito cedo, ele já manifestava grande aptidão para a música. Ainda garoto, construía rudimentares pífanos de bambu.
Segundo a flautista Andrea Ernest Dias, que fez uma alentada pesquisa sobre a vida e a obra de Moacir Santos, que resultou em um livro que ela escreveu sobre o músico pernambucano, obra que foi originária da sua tese de doutorado em música na Universidade da Bahia:
Aos 9 anos, o menino Moacir não perdia um ensaio sequer da Banda Municipal de Flores. Encantado pelos instrumentos que via e ouvia, estava sempre à espreita de uma oportunidade em que pudesse experimentá-los [...] Com o tempo, passou a tomar conta dos instrumentos, aproveitando os momentos ociosos entre as atividades da banda para explorá-los e descobrir o som de cada um deles. A capacidade autodidata se manifestou mais uma vez, e Moacir aprendeu a tocar todos os instrumentos da banda: trombone, trompete, trompa, clarineta, saxofone, percussões, além do violão, do banjo e do bandolim.
Na residência da família que o adotara, Moacir, destacado aluno na escola local, era encarregado de vários serviços: colocar água e lenha na casa, tratar dos porcos e ainda trabalhar no roçado. Logo cedo, ele descobriu que era diferente dos outros, porque “menino preto era difícil; ele era preto [...] antigamente havia mais diferença entre o branco e o preto” (conforme declarações da sua antiga professora em Flores, recolhidas por Andrea Ernest Dias para o seu livro “Moacir Santos ou Os Caminhos de um Músico Brasileiro”).
Aos 13 anos, Moacir já tocava profissionalmente em Flores e nas cidades próximas. Por essa época, causara grande sensação, apresentando-se em uma festa realizada na cidade de Alagoa de Baixo (hoje Sertânia). O episódio despertou nele a decisão de alargar seu horizonte musical. O aprendizado de música fora feito, até então, com os mestres de banda de Flores e ouvindo músicos de cidades vizinhas, como Manuel Marrocos, de Princesa, na Paraíba.
Revoltado com as exaustivas tarefas que lhe eram dadas na casa onde morava e inspirado na leitura do cordel “A vida de Cancão de Fogo e seu Testamento”, em que o poeta paraibano Leandro Gomes de Barros descreve as façanhas de Cancão, um personagem esperto e aventureiro, Moacir decidiu fugir de Flores. Tinha 14 anos. Pegando carona em um caminhão, foi para Sertânia, onde pernoitou. No dia seguinte, seguiu a pé, por quatro léguas, até a antiga Alagoa do Monteiro, na Paraíba.
Ao chegar em Monteiro, faminto e sem nenhum dinheiro, procurou demonstrar, aos componentes da banda de música da cidade, suas habilidades com os instrumentos musicais. Foi levado à presença de um dos homens influentes do lugar, que lhe conseguiu um emprego na coletoria local. Moacir relata que, em Monteiro, foi “tratado como príncipe”, transformando-se no mascote da cidade, a qual vibrava com o seu clarinete. Essa situação, contudo, durou pouco tempo. Descontente com o escrivão, com quem trabalhava na coletoria, resolveu ir embora de Monteiro.
Começou, então, uma longa jornada por várias cidades de Pernambuco, do Ceará e da Bahia, sempre em busca de locais em que houvesse agrupamentos musicais. Viajava nas carrocerias de caminhões e, ao chegar ao destino, procurava conhecer os músicos locais. Impressionava a todos com as suas habilidades, era incorporado às bandas ou grupos de música e conseguia um trabalho qualquer para o seu sustento. Foi ajudante em armazém, podador de árvores, operário em fábrica, entregador de pães e passou um tempo viajando com um circo. Mas, como se fosse uma ave de arribação, não demorava muito tempo nos lugares. Quando da sua passagem por Salvador, Moacir obteve o seu primeiro documento civil, mas com dados imprecisos, que ele próprio fornecera.
Em 1943, chegou ao Recife. Por intermédio do compositor Antônio Maria, na época radialista na cidade, apresentou-se em um programa no rádio, em que era anunciado como novidade, “um rapazinho que está aí tocando saxofone”. O desejo de ingressar na banda que a Aeronáutica estava formando na cidade foi frustrado porque o grupo só aceitava músicos brancos. Tomou conhecimento de que a Polícia Militar da Paraíba estava recrutando soldados músicos e resolveu tentar o posto e aproveitar o tempo para cumprir o serviço militar obrigatório.
Moacir Santos chegou à Paraíba confiante na sua incorporação como “músico de primeira classe” nos quadros da Polícia Militar. Submetida a sua admissão, pelo regente da banda, ao comandante da corporação, teria havido, conforme ele próprio narrou, uma restrição pelo fato de ser negro. O seu ingresso só ocorreu pela insistente argumentação do maestro ao comandante de que os músicos negros da banda eram muito melhores do que os brancos. No episódio, o poder da música do jovem instrumentista conseguiu superar a inominável barreira da discriminação racial.
Na Paraíba, Moacir encontrava, pela primeira vez, um trabalho regular e duradouro. Em pouco tempo, tornou-se uma figura respeitada no meio musical da capital paraibana. Mas um fato veio fazer com que ele tivesse que se desligar, prematuramente, da corporação militar. Em 1945, o maestro Severino Araújo, que era o regente da Jazz Band da PRI-4 Rádio Tabajara da Paraíba, deixou a emissora para ir para o Rio de Janeiro, na tentativa de ascender em sua carreira profissional.
Precisava-se, então, urgentemente, de um maestro para recompor o grupo musical da Rádio Tabajara e a solução foi requisitar aquele jovem músico, de pouco mais de 20 anos, que se destacava na Banda da Polícia Militar. Já como maestro da emissora, Moacir casou com a paraibana Cleonice, com quem viveu por quase 60 anos.
Na Paraíba, Moacir compôs algumas de suas primeiras canções. O CD “Choros e Alegria”, produzido em 2005 pela gravadora Biscoito Fino, traz parte da produção paraibana do maestro. Em sua justificativa para o título do disco, disse ele: “Choros e Alegria é um paradoxo. Mas o choro não é uma música triste. E não choramos só de tristeza”.
Uma das faixas do álbum, interpretada pelo Trio Madeira Brasil, é o magistral choro “Ricaom” (Moacir, ao contrário) que tem, na partitura original, a anotação da data em que foi composta: “João Pessoa, 20/11/1944”.
O descontentamento com uma nova direção que assumira na Rádio Tabajara fez com que Moacir decidisse deixar a Paraíba. Com cartas de recomendação de políticos paraibanos, deslocou-se para o Rio de Janeira, com a intenção de ingressar na Rádio Nacional, naquela época o maior núcleo de produção musical do País.
Moacir realizou o sonho: trabalhou como músico e, após três anos, tornou-se o primeiro maestro negro da emissora. No Rio de Janeiro, aprofundou seus estudos musicais com os maestros Guerra Peixe, Cláudio Santoro e com o alemão Hans-Joachim Koellreuter. Nas palavras de Moacir, “estudei tanto que me tornei o assistente de Koellreuter quando ele se ausentava do Rio”. Em 1954, mudou-se para São Paulo, onde dirigiu a orquestra da TV Record por dois anos.
No final dos anos 1950, o músico iniciou intensa atividade como professor, tendo como alunos, entre outros, Paulo Moura, Baden Powell, Sérgio Mendes, João Donato, Carlos Lyra, Dori Caymmi e Roberto Menescal, o que fez com que fosse chamado de “Patrono da Bossa-Nova”. O grande violonista Baden Powell relatou como era o aprendizado com Moacir:
“Todos os músicos profissionais, naquela época, iam estudar música ‘superior’ com ele. Era um professor sensacional. Meio metafísico. Explicava a harmonia, o intervalo entre as notas, as dissonâncias, usando como exemplo as estrelas. Fui estudar com ele essas ‘sabedorias’. Ficamos muito amigos”.
Em 1965, gravou o disco autoral “Coisas”, considerado um dos mais importantes trabalhos já feitos na música popular instrumental no Brasil. Todas as canções do álbum têm o título de “Coisa”, acrescido de uma numeração. A respeito dessa peculiaridade, ele revelou que sempre teve o anseio de produzir músicas com a catalogação erudita, por exemplo, Opus 3, nº 1.
Uma das faixas do disco “Coisas”, a “Coisa nº 5”, que tem letra de Mario Telles, com o título “Nanã”, é a música mais regravada e conhecida de Moacir Santos. Umas das mais cultuadas regravações de “Nanã” é a do baterista Edison Machado, com arranjo de Moacir e participação dos maiores instrumentistas brasileiros da época, como Paulo Moura, Raul de Souza, Tenório Jr e Tião Neto.
Ainda em 1965, Moacir compôs a trilha para o filme norteamericano "Love in the Pacific". Em 1967, decidiu morar nos Estados Unidos. Para Ruy Castro, “Moacir jamais superou completamente o trauma de ter sido o único maestro negro da Rádio Nacional e, segundo ele, não ter tido o (justo) reconhecimento”, que era dado aos outros maestros da emissora.
Nos Estados Unidos, Moacir continuou a exercer o magistério, trabalhando em trilhas para filmes e gravando discos, três deles na conceituada gravadora de jazz "Blue Note". Um desses álbuns, “Maestro”, obteve a indicação para o Grammy, em 1972. Nenhum deles, porém, foi lançado no Brasil.
Em 1995, Moacir sofreu um acidente vascular cerebral que o deixou impossibilitado de tocar, mas que não o impediu de continuar lecionando. No ano seguinte, o maestro recebeu a comenda da Ordem do Rio Branco, conferida pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Em 2001, trinta e cinco anos depois do álbum “Coisas”, Moacir teve, novamente, um disco com suas músicas gravado no Brasil, através do Projeto Ouro Negro, que inclui um CD duplo, DVD e um livro de partituras. Segundo o músico Mario Adnet, um dos idealizadores do projeto, Moacir Santos, que veio ao Brasil para o trabalho, expressava durante as gravações, o seu contentamento, repetindo, constantemente: “parece um sonho, mas é realidade”. O Projeto Ouro Negro contou com as participações de Djavan, João Bosco, Gilberto Gil, João Donato, Milton Nascimento, Joyce, Ed Motta e da orquestra Ouro Negro, formada com 14 dos principais instrumentistas brasileiros.
Em 2006, três meses apóa a morte de Moacir, o Presidente Lula concedeu-lhe a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural. A comenda foi recebida por sua esposa e por seu filho. A sofisticada obra autoral do Maestro, de fortes raízes afro-brasileiras, é cultuada por músicos renomados em todo o mundo. Moacir foi reverenciado pelas palavras que Vinícius de Moraes colocou no “Samba da Benção”, do seu ex-aluno Baden Powell: "a bênção, Maestro Moacir Santos, que não és um só, mas tantos". Apesar de ter recebido o reconhecimento oficial, por meio de comendas e honrarias, Moacir Santos, o Ouro Negro do Brasil, não obteve o prêmio que, certamente, mais o agradaria conquistar: ter a sua música executada e ouvida na terra em que ele nasceu, “entre os preás e os mocós”.
Flávio Ramalho de Brito é engenheiro e articulista