Há quem não acredite, mas é prazeroso provar dos ventos das amenidades. Não tememos perigos das viagens siderais, não precisamos dos observatórios de trânsito espacial, dos radares, por sinal sempre deficientes e inseguros nos nossos céus. Com esses ventos, voa-se com segurança, sem riscos nem turbulências.
Assim, pode-se começar o voo. E quase sempre faço-o num álacre prazer de decolar de minha rede de balanço. Isto mesmo, de uma rede, turbinado por essa “manhosa”, ouvindo o gemer dolente da corrente do armador, quase em gemidos sussurrantes.
Ontem, fiz uma dessas viagens. E acreditem, viajei na memória com uma série de expressões conhecidas, até então perdidas e esquecidas no meu arquivo de lembranças, mas usadas ainda, como se fossem carimbos e que ficam boiando no espaço e vêm para as bocas da maioria dos viventes humanos.
São frases como estas: “O médico passou uma bateria de exames...” “Antibiótico?! Acaba com a flora intestinal”; “Ele obteve uma vitória esmagadora” ou mesmo as benditas frases cheias de conhecidas benevolências como “Ele deixou uma grande lacuna”; “Foi uma perda irreparável.” São frases que aparecem em momentos mais inesperados, elas chegam e se jogam no instante, por extenso.
De repente, lembrei-me de um barulho que ouvi um certo dia. Quase um pânico! Meninos gritaram freneticamente. A criança havia sofrido uma queda. Correu a mãe, correu a tia, o avô e o amigo do pai. Na volta, já segurando a criança pelo braço, a mãe emitia a mais lúdica e repetida expressão: “Ave Maria!!! Criança cega a gente!”
Silenciosamente, o ritmo de minha rede me conduziu, quase por indução, a outras lembranças. Aquele motorista tranquilo, dirigindo o seu automóvel ao lado do filho. Inesperadamente, o seu carro é ultrapassado por um condutor imprudente. Mais na frente, o infrator avança o sinal vermelho. O menino faz um sinal de espanto! O pai, com voz pausada, olha para o filho e diz: “Tá vendo, ó! Quando bate quer ter razão!”
Dia desses, vi a vizinha debruçada no muro do jardim olhando pra rua. Parecia querer conversar com o mundo. A amiga que caminhava na calçada, com expressão de excessivo olhar e vencida pela curiosidade, parou e perguntou-lhe: E então, Fulana, você foi ao casamento ontem? Respondeu rapidamente e sem gaguejar: “Nossa, minha filha, nem te conto!!! Foi tudo tão bem organizado! A noiva estava linnnnnda!!!”
Depois, recordei-me do homem tímido, no entanto, um esteta no jogo das frases prontas. Sentado à mesa de um restaurante, observava atentamente outro frequentador que pediu ao garçom uma dose de uísque, gelo e um guaraná. Quando derramou um pouco o refrigerante em sua dose, rapidamente o homem ao lado o censurou dizendo:
"Meu amigo, o escocês passou tantos anos para retirar o açúcar do uísque e você colocando refrigerante!!!”
E assim vai se espalhando o prazer do dizer geral, o mesmo que abrir um arquivo qualquer na cabeça e emitir o que nele está gravado. Assim, muitos vão extraindo de dentro de si o que a criatividade deixou de lhes oferecer, para desfrutar apenas das horas prosaicas, arcaicas e do dizer fácil da placa-mãe de cada um.
No entanto, é sempre bom lembrar que mais vale uma frase estereotipada, pura em toda a sua inteireza, do que uma abarrotada de esmeros gramaticais ou construída com a mais fina criatividade. Algumas podem estar recheadas do mal que o maquiavelismo moderno expressa com tanta frequência e de forma tão comum. Além do mais, a sua consequência pode ter efeitos lancinantes. Na verdade, o que vale é a boa energia dessas afirmações, das prosas ilibadas. É a palavra substancial, essencial, simples que faz derramar no corpo a mais vigorante carga da boa química, de que todos nós precisamos para sagrar o bem comum e a alegria de viver. O espaço agora me avisa que devo concluir as palavras deste rápido balanço, exceto os balanços de minha rede. Esses continuarão constantes, misturados com o hálito das primeiras horas amanhecentes. E assim, desse jeito, sempre anunciadas através do cantar de um Sabiá, que contracena com um Bem-te-vi, aqui na praça em frente a minha casa. Ambos são regentes dos meus ponteiros que atuam feito relógios de parede que nunca atrasam e que muito me "adiantam" nesses voos que me põem sempre em alta.
E assim, o meu dia nasceu, ofertando essas amostras grátis, empáticas, inofensivas, impedindo que os neurônios morram pandêmicos pelo contágio das coisas perfurantes, essas que tanto reprimem e fisgam a alma da gente. E, sendo este espaço pequeno para continuar tal assunto, peço licença ao caríssimo leitor para encerrá-lo por aqui com uma velha e conhecida “chave de ouro.”
Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista