Com os cuidados que, aos poucos, se vão incorporando à vida normal, desci no elevador e fui tomar sol, cedinho, na quadra vizinha que o nosso condomínio incorporou desde um bom tempo. A falta de sol e de um pouco de liberdade para sair olhando as árvores vem me roubando da melhor distração, que é não parar nem pensar o tempo. Na minha idade, o tempo, quanto mais afastado melhor.
Rodeei a quadra que, nessa hora foi toda minha. Indo pelas beiras, da direita para a esquerda, e para não ficar tonto, invertendo o giro, da esquerda para a direita. Mas a cabeça sem sair das quatro linhas da crônica de 1892/93 de Machado de Assis, vistas à noite e a esmo, trazendo-me, de surpresa, o nosso Pedro Américo, imprevisível no mundo de relações, quase todas subterrâneas, do escritor.
A crônica vem do tempo em que o pintor famoso representava a Paraíba nos primeiros anos do parlamento republicano. E por incrível que a mim pareça, pela primeira vez em minhas passagens por Machado, descubro o mestre da galhofa e das tintas da melancolia tratando alguém fora do ciclo mais intimo (reduzido a Bocaiuva, Nabuco, Araripe Júnior, Mário de Alencar) de “meu amigo Pedro Américo”. Um achado, sem dúvida.
Fora o Rio, ou melhor, fora os que sentavam à mesa diretora da Academia e uns poucos, pouquíssimos, da Garnier e do Cosme Velho, foram raros os que mereceram do verdadeiro Dom Casmurro o tratamento aberto, assim escrito de “meu amigo”.
Refere-se a Pedro Américo, não uma só vez, mas duas ou três, uma crônica após outra, discordando de início de proposta apresentada pelo nosso deputado “querendo à fina força acabar com as loterias”. Mais adiante volta a outro assunto, de forma irônica, discordante, para terminar: “Ah! meu caro amigo...Francamente, eu prefiro as belezas da Batalha de Avaí.”
Lendários, distantes de origem, isolados em seus tronos, causam-nos real surpresa, e fora de hora, assim juntos, Areia e Catumbi.
Em escrito a Mário de Alencar, na Correspondência, vemos menos proximidade. Machado é secretário do Ministério da Viação, circula pelos espaços de Epitácio no Ministério da Justiça. Mantém-se distantes, tanto pelo intimismo do escritor maior – tão maior quanto mais dentro de si – quanto pelo personalismo do paraibano recém-chegado ao governo, já descrito como “homem grave, cerimonioso, muito cuidadoso de si e muito cioso de suas atitudes públicas” (José Maria Bello – História da República).
A Paraíba não é pequena. Não é mostrada, não aprendeu isso de Pernambuco, e só a partir de Pedro Américo, ainda no Império, e depois de “A Bagaceira”, de 1930, de Zé Lins e de Chateaubriand é que começou a dar as caras fora de casa, sem pabulagem.
Agora, sento um pouco, o banco ao lado ainda está frio, enquanto a fila de pequenas formigas carrega unida, disciplinada, a provisão comum. O índio deve ter aprendido com elas. Colhem juntos, e sem saber aritmética, dividem juntos a faina e o proveito. Tão bom que os homens houvessem aprendido.
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL