Não, leitor, não tema. Não se trata de nenhuma teorização solene sobre a História. Até porque, não sendo historiador, não sou qualificado para tal mister. O que temos aqui, como bem adverte o inequívoco título, são meras divagações – e ainda por cima diletantes, ou seja, absolutamente amadorísticas, isto é, feitas apenas por amor à reflexão descompromissada sobre um tema importante, direito de todos e de qualquer um. Mas advirta-se: a qualidade de diletante não desqualifica necessariamente a divagação. É o que espero que ocorra aqui.
Primeiro nos situemos. Estamos no início do curto romance "O sentido de um fim", do inglês Julian Barnes, um dos mais renomados da atualidade. Certo dia, creio que por volta dos anos sessenta do século passado, um professor de uma escola joga para seus alunos adolescentes uma pergunta instigante: “O que é História?”. Logo um arrisca, peremptório: “História é a mentira dos vitoriosos”. Ao que o mestre, cauteloso, acrescenta: “ ... desde que você não se esqueça de que ela é também uma forma de o derrotado se autoiludir”. Continuando, outro aluno, talvez menos sofisticado e mais direto, adverte: “A História é um sanduiche de cebola crua”. Por que razão?, pergunta o professor. “Ela só se repete, senhor. Ela arrota. Nós vimos isso muitas vezes durante este ano. A mesma velha história, a mesma oscilação entre tirania e rebelião, guerra e paz, prosperidade e empobrecimento”. A seguir, mais um jovem lança sua opinião plena de convicção: “História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação”. Convidado a dar um exemplo, o aluno foi em frente.
Pouco tempo antes dessa aula provocadora a escola tinha sido abalada pelo suicídio de um dos discentes (de nome Robson), rapaz calmo e discreto, que, segundo boatos, teria engravidado a namorada e deixado um simples bilhete de despedida com as lacônicas palavras: “Desculpe, mamãe”. Este fato, o suicídio do colega, foi o gancho a que se apegou nosso aluno para exemplificar sua tese da cebola. Deixemos então que ele se explique: “É um fato histórico, senhor, mesmo que de menor importância. Mas recente. Então ele deveria ser entendido como história. Nós sabemos que ele está morto, sabemos que ele tinha uma namorada, sabemos que ela está grávida, ou estava. O que mais nós temos? Um único documento, um bilhete suicida dizendo “Desculpe, mamãe”, pelo menos segundo Brown. Esse bilhete ainda existe? Ele foi destruído? Robson teve outros motivos além dos óbvios? Como era o seu estado de espírito? Podemos ter certeza de que o filho era dele? Nós não podemos saber, senhor, nem mesmo passado tão pouco tempo. Então como alguém poderia escrever a história de Robson daqui a cinquenta anos, quando seus pais estiverem mortos e sua namorada tiver desaparecido e não quiser mais se lembrar dele? O senhor está vendo o problema?”. E aí?, pergunto eu.
Aí o professor ponderou, achando que os historiadores estavam sendo subestimados pelo aluno: “Os historiadores sempre se deparam com a falta de evidência direta das coisas. Eles estão acostumados com isso”. E por aí foi o mestre, defendendo a capacidade explicativa dos profissionais da História, deixando à sua classe – e a nós, leitores do livro – material suficiente para boas reflexões, diletantes ou não, mas no presente caso, sim, bem diletantes, faço questão de lembrar.
Pois bem. Voltemos a considerar a História. Quanta coisa a se pensar, a partir dessa simples amostra. Será mesmo a História “a mentira dos vitoriosos”? Em parte sim, mas em parte não. Que os vitoriosos escrevem a História num primeiro momento, após a vitória, não há dúvida.
E que a escrevem ao seu modo, também não. Mas há limites a respeitar, diante de evidências incontornáveis. Sem falar na passagem do tempo, que corrige os excessos e restaura, dentro do possível, a verdade plausível para as circunstâncias. Stálin, muito ávido, mandou extirpar da história da revolução russa tudo que se referisse a Trotski, inclusive em fotos. Não adiantou. Tão logo morreu o ditador, aos poucos Trotski foi retomando o lugar que lhe cabe por direito naqueles acontecimentos. Então nem sempre (ou nunca) a História se resume tão somente à “mentira dos vitoriosos”, porque não raro são os derrotados que têm a última palavra. E aí surge o problema da parcialidade dos derrotados, que também precisam respeitar alguns fatos ou interpretações, sob pena de se desmoralizarem à vista de todos.
A História “é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação”? Sim, porque as memórias falham e os documentos faltam, e aí entram a imaginação, a subjetividade e não raro a ideologia dos historiadores, muitos deles dolosamente parciais, partidários e apaixonados, sem aquela isenção que se exige dos verdadeiros homens de ciência. Mas aqui também o tempo trabalha a favor da verdade possível, corrigindo equívocos, suprindo omissões e separando as interpretações dos interesses.
No livro de Julian Barnes, já maduro, aquele aluno que inicialmente afirmara que a História era a mentira dos vencedores modifica seu pensamento, afirmando que “Ela é feita mais das lembranças dos sobreviventes, que, geralmente, não são vitoriosos nem derrotados”. Sim, também isso, pois passados os vitoriosos e os derrotados do primeiro momento, restam os sobreviventes, que eventualmente não são nem uma coisa nem outra, e são esses que tomam então a palavra e dão a sua versão, talvez definitiva. Falei agora em versão. E vejo que no fim talvez tudo se resuma mesmo a isso. Versões da História. Versões da verdade. Versões dos grandes e dos ínfimos acontecimentos, da batalha de Waterloo ao suicídio de um jovem estudante. Versões de tudo. Até mesmo versões de versões.
Como então não ficar um pouco (ou muito) cético diante de tudo? Essa a razão pela qual me convenço de que um certo ceticismo faz bem a quem, maduro, contabiliza ilusões perdidas. Não um ceticismo total, claro, porque não se pode viver descrendo de tudo absolutamente. Não. Apenas o necessário, por exemplo, para não se acreditar em Papai Noel depois da infância nem em pessoas que proclamam as próprias virtudes. Quanto a isso, sei, não estou mais com a cabeça nas nuvens. Aqui os pés estão bem plantados no mais concreto dos chãos.
Francisco Gil Messias é cronista e ex-procurador-geral da UFPB