As duas linhas de ferro paralelas serpenteiam os mais diversos cenários. Máquinas pesadas na construção e leves na poesia seguem equilibradas na estrada férrea que parece se estender indefinidamente. Os monstros de pés de aço cavalgam pelo real e imaginário, expelem fumaça pela cabeça, feito bule com o café quentinho.
São seres que soltam em fotografias, músicas, películas cinematográficas, telas, canções, força e delicadeza bruta. Emergem em trilhos debaixo do asfalto, sustentados em pedras disformes pelo tempo e reaparecem para velhos amigos,
meio que fantasmas a lembrar o passado da cabeça branca e a projetar o futuro na mente do garoto.
Ah, o fascínio pelos trens e seus congêneres! Vi com ar de encantamento reaparecerem certa vez sob o asfalto gasto ao redor do Pavilhão do Chá. Não era de trem, era de bonde, os trilhos antigo e que transportava as gentes de tempos idos. Parente urbano do primeiro. Foi como um relance, logo trataram de escondê-los sobre uma grossa camada de piche. Inaceitável, mas necessário. Não importa, jamais abandonaram os meus pensamentos, impressos indeléveis restaram como se eu os já tivesse vivido.
Assim como guardo em fotos (e memórias) os trens e as paisagens desse 'Brasilsão'. De Ouro Preto a Mariana e das minas gerais, igrejas e a revelação da velha Colônia; de Bento Gonçalves, Garibaldi e Carlos Barbosa, dos vinhos e riquezas e frios da Serra Gaúcha; de Curitiba a Morrestes e a descida de tirar o fôlego em meio às árvores, cachoeiras e desfiladeiros da Mata Atlântica em decaída pela Serra do Mar.
E volto aos trilhos já sem trens que levam à ponte ferroviária sobre o Rio Paraíba em território de itabaianense, ou as estações vazias de Sobrado, Campina Grande, pela Paraíba adentro. E à parada que virou pouso e o charmoso túnel encravado na rocha, símbolos do trem de Bananeiras a transportar café e gentes para o litoral.
Dá para ouvir o apito de sinal de chegada e partida, as vozes de sotaques distintos das várias épocas, diversas origens e vários destinos. Do italiano ao nordestinês, do gauchês ao japonês, do caboclo ao alemão, em trens de integrações, desencontros e revelações, traduções de povos, costumes e choros e sorrisos.
Devaneios férreos guiados pelo monstro enjaulado feito equilibristas em duas linhas, eficácia na gaiola sem grades, inutilidade se liberado das muletas guias. “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras – liberdade caça jeito”, disse Manoel de Barros. Olhos, mentes, corações e mãos encontram jeitos.
E segue o trem, transportando vidas de malas cheias e corações vazios, com carga alheia e amores febris. E o comboio barulhento passa sem querer deixar de ser notado.
Quantos vagões abarrotados de felicidades tocarão o coração do moleque à beira da linha, fora do trem, embarcado na vida? E quantos seguirão impunes entre florestas, construções humanas e terras áridas? E qual o fim da linha, para o trem e para a vida?
Clóvis Roberto é jornalista e cronista