Ao chamar uma sinfonia inteira de "Poema Divino" o autor demonstra a que veio. E, logo no início, os graves metais já lançam a ideia de Divindade que o formidável moscovita desenhou em toda a sua obra, numa encarnação de apenas 43 anos. Assim, Alexander Scriabin classificou a 3ª de suas 5 sinfonias. À quarta e à quinta também deu títulos de poemas sinfônicos. “O Poema do Êxtase” e “Prometheu: O Poema do Fogo”.
Imprimir a ideia poética em obras sinfônicas foi comum a outros compositores clássicos. Em Scriabin, porém, é notória a influência do lado místico, aprofundado por seus conhecimentos teosóficos.
Na 3ª sinfonia, há uma peculiar “Introdução” que dura apenas um minuto. O bastante para expor a célula mater que expressará a “voz de Deus”, presente em todo o Poema. A seguir, o 1º movimento se inicia com brincadeira alegre e dançante rodopiando pelas cordas, contrapondo-se ao tom solene da abertura.
O caráter jocoso se desenrola até aparecerem os primeiros sinais de romantismo, esboçado em clamores insinuantes das cordas, na intenção de acolher a paixão como sentimento igualmente divino. Em seguida, o som dos metais volta a imprimir seriedade ao assunto, logo amaciado pelo novo tema que surge ritmado, concluindo o andamento com lirismo comovente.
Na parte seguinte (minuto 4º), surge um trecho ao sabor de “baile”, arrematado com o retorno da grave introdução, que esmaece conectando-se com a alegre brincadeira do início, agora enriquecida de outros naipes. Aos poucos, ouvem-se sinais que prenunciam a tragédia como parte da Existência.
De súbito, o desabrochar de flores, borboletas e outras miudezas bucólicas da manhã surgem delicadamente em estrofes que voltam a revelar a personalidade divina, intensa, sob a qual se estabelece o significado do Poema. Entremeado das nuances já descritas, o movimento se desenvolve, fazendo-as desfilar em vários planos e registros permitindo as ideias se abraçarem amigavelmente com notável unidade harmônica. Alternando ritmos em períodos curtos e mais extensos, vem nova alusão ao “baile” já citado.
Assim consolida-se a bem lapidada diversidade de frases que adornam a ideia do Divino, entre aparições da Voz anunciada pelos metais no tema da introdução. Estas citações se reelaboram num colorido encantador, trocando de roupagem sonora em trechos que se dão as mãos como na “dança” de Matisse.
E o fim do primeiro movimento já se anuncia em clima crepuscular, mesclado às sensações iniciais, renovando-se com a delicadeza das flautas e flautins que assobiam como passarinhos voejando por copas verdejantes. O epílogo deste movimento é muito bem marcado por ritmo galopante de fragmentos temáticos com toda a orquestra, concluídos com a mesma Voz solene dos trompetes que abrem a peça, que logo se evapora aveludada pelas harpas a concluir a parte que Scriabin intitulou como “Lutas trágicas e misteriosas”.
No segundo movimento, uma verdadeira prece é declamada. Confissões, introspecções, reflexões, íntimas e externas, emolduradas pela ternura do instante, são debulhadas até o êxtase central em que a angústia existencial das dúvidas, incertezas e sortilégios deblateram em crescente explosão preparada pelas harpas. O conjunto vai se fundindo aos arpejos que soam como filetes luminosos de conexão com os anjos. Há, porém, lampejos de resignação perante o destino, com olhar para as branduras da Fé. E a alma volta ao corpo confiante dos benefícios auferidos, fortalecida pela consolidação temática que se ampara em novas aparições da Voz.
Esta “voz” tem uma elevada significância em toda a obra, mas se evidencia com mais ênfase no último movimento, que começa bucólico e dançante, e logo se exibe nos trompetes. Ela soa durante todo o Poema, mas agora é frequente e expressa nitidamente na pequena frase composta por “um sol e três mis bemóis”. É a célular mater que, como foi dito, simbolizaria a voz de Deus e diz claramente: “Confie em mim!” (sol - mi♭- mi♭ - mi♭).
A concepção desta parte final é burilada nos mesmos moldes de toda sinfonia. Riqueza de cores, timbres, ritmos, cavalgadas, bailes, gorjeios primaveris, tudo recitado em temas e subtemas que, embora diversificados, se estruturam em uma admirável atmosfera poética, única e coesa na firme intenção: retratar a sublimidade do Divino.
Nos três últimos minutos, a extraordinária composição assume grandiosidade espetacular. Concentra maciçamente a essência da linguagem pretendida ao juntar todas as forças da expressão musical na triunfal e extasiante exposição do tema conclusivo.
Unindo-se à introdução, a Voz clama, antes do último acorde, e se eterniza divinamente: “Confie em mim!”
Germano Romero é arquiteto e bacharel em música