Em um dos últimos capítulos da série Os Bórgias, um dos personagens recita, com o acento italiano do latim, o célebre Carmen LXXXV "Odi et amo", de Catulo. Na série italiana Baby, que mostra a vida de adolescentes romanos, com seus problemas intermináveis, uma professora do ensino médio está lendo, em sala de aula, um texto em latim e pede para uma das alunas, naquele momento desatenta, traduzir. Novamente, trata-se do dístico de Catulo, que vai aqui transcrito e de que apresento duas traduções nossas, uma operacional e outra em duplo heptassílabo:
Catulli Carmen LXXXV
Odi et amo, quare id faciam, fortasse requiris.
Nescio, sed fieri sentio et excrucior.
Odeio e amo, talvez perguntes por que faço isto.
Não sei, mas sinto acontecer e atormento-me.
Eu te odeio e te amo, a razão queres saber?
Eu não sei, apenas sinto e atormenta-me sofrer.
Odi et amo, quare id faciam, fortasse requiris.
Nescio, sed fieri sentio et excrucior.
Odeio e amo, talvez perguntes por que faço isto.
Não sei, mas sinto acontecer e atormento-me.
Eu te odeio e te amo, a razão queres saber?
Eu não sei, apenas sinto e atormenta-me sofrer.
A cena da série Baby mostra uma realidade não só da Itália, mas de muitos países europeus, onde se estuda o latim, embora saibamos que, lá como cá, há sempre aves que gorjeiam no tom errado, buscando a extinção do estudo dessa língua. A série, além das mesmices de jovens em busca de problemas, nos ensina que a cena mostrada não é um caso isolado em um dos capítulos e também que a aula de latim não é por acaso. Muito menos o texto do Carmen LXXXV de Catulo, a nosso ver, escolhido a dedo.
Há outras cenas, com outro professor, em uma aula sobre o emprego do ablativo com a preposição “cum”, que se dá quando uma das moças está precisando da companhia da sua melhor amiga. Além do assunto oportuno da aula de gramática, o episódio nos diz, que há na escola duas aulas de latim, uma de literatura e outra de língua, com professores diferentes. Para a mediocridade dos burocratas e tecnocratas brasileiros, um luxo.
É fato que haveria muita coisa para apresentar em uma série de adolescentes, no ensino médio, cujas aulas são usadas, o mais das vezes, apenas como pano de fundo. Já a apresentação de uma aula de latim, cujo tema é o Carmen LXXXV de Catulo, quando uma das alunas está passando por uma crise amorosa e ser essa mesma aluna quem traduz o poema, apesar de parecer desatenta, diz muito.
Todos sabemos como a literatura italiana é rica e variada, havendo poetas suficientes para serem utilizados em uma aula de poesia falando de Amor, esse sentimento misterioso, contraditório e excruciante (lá vamos nós caindo em Catulo...); esse Amor, como diz Dante, "che move il sole e l'altre stelle".
Mostrar Catulo e o Carmen LXXXV, em cena apenas falada, sem nada escrito no quadro, é apostar na força e na perenidade de uma língua e de um poeta que nos mostra o amor a nos estraçalhar, a nos fazer odiar, mas a nos mover a amar o ser amado. Catulo faz isto com propriedade, com o sintetismo da língua latina, expresso no sintetismo do dístico elegíaco e da sua forma, naturalmente, epigramática, densa, impactante, elencando, em duas linhas, oito verbos, sem um substantivo, sem um adjetivo, verbos que condensam o paradoxo inicial – “Odi et amo”.
Apesar de denso, trata-se de um poema fluente, demonstrado pela sua divisão em três segmentos. A negação do conhecimento de causa, em resposta à possível pergunta do interlocutor, “Nescio” (Não sei), a nos revelar que, em relação ao amor, o conhecimento racional não tem importância diante do que sentimos.
Quando se trata de amor, conhecer pela racionalidade entra em choque com o conhecer pelo sentimento. No amor, não há razões, só desrazões. Assim é que o segundo segmento é formado por duas orações (uma oração coordenada adversativa, que serve de principal à segunda oração, uma subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo), cujo início é com uma conjunção adversativa, “sed” (mas), pondo em conflito o saber e o sentir, “sed fieri sentio” (mas sinto acontecer).
Sendo o verbo “fieri” semidepoente, com uma forma passiva, mas podendo ter também um sentido passivo, há uma perfeita adequação com a essência do sofrer uma ação de aspecto infectum, portanto, não acabado, da parte do eu-lírico. O paradoxo, que antes se estabelecia entre “Odi et amo” (Odeio e amo), agora se estabelece entre “nescio” e “sentio” (não sei e sinto).
O terceiro segmento é formado por um verbo, “excrucior” (atormento-me), trazendo-nos, de modo sintético, o resultado do conflito que racionalmente não se explica. O resultado é o sofrimento, o tormento tão natural aos que estão envolvidos na paixão amorosa. Note-se que o início do poema, “Odi et amo”, junta-se ao seu final, “excrucior”, e o resume – “Odeio e amo; atormento-me”. O meio do poema é a tentativa de explicar o que não se sabe, porque do amor nada sabemos. Do Amor, apenas sentimos aquilo que nos diz Camões:
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, dói não sei por quê.
Vem não sei como, dói não sei por quê.
O latim nos parece em alta, portanto, apesar do paradoxo com um tempo em que a voz corrente é a da efemeridade e da necessidade do imediato das redes sociais, sobrepondo-se, falsamente, mais alto que a perenidade de uma língua que não se dobra aos modismos.
Em tempo: o jovem e talentoso poeta paraibano Joedson Adriano nos mostra, com uma saborosa ironia, uma tradução primorosa desse poema de Catulo:
Perguntaram pra mim, se ainda gosto dela,
Respondi tenho ódio e morro de amor por ela
Respondi tenho ódio e morro de amor por ela
Ainda que os autores dessa música jamais tenham conhecido Catulo ou jamais tenham pensado no Carmen LXXXV, não podemos ignorar que há na canção popular uma reverberação do que diz o poeta de Lésbia. De um jeito ou de outro, o latim vive.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL