Aqui, um parêntese: Só o leitor de poesia sabe o quanto este gênero literário é discriminado até mesmo onde jamais deveria sê-lo: nas livrarias. Com efeito, quem quer que se aventure a procurá-la, pode ter a certeza de uma coisa: ela não se mostra, não se expõe, pois, simplesmente, escondem-na. E escondem-na nas prateleiras mais inacessíveis, praticamente ao rés-do-chão, tanto que o leitor, para alcançá-la, tem que ficar de joelhos, numa posição genuflexa, contrita, como se estivesse a cumprir um ritual religioso. Poesia, já se vê, pelos poucos leitores que possui, por ser boicotada até mesmo nas livrarias, por ainda se revestir de uma conotação pejorativa – assim como a palavra poeta –, não fosse a abnegação de alguns poucos, pouquíssimos, deixaria de existir. Daí, até mesmo nas livrarias, que deveria ser o seu hábitat natural, transformar-se, também, na antimercadoria por excelência. Fecho o parêntese.
Quando Paulo Prado declara “que a literatura e a filosofia são as duas maiores inimigas da poesia”, parece ter esquecido que, embora a origem do aforismo seja, na maioria das vezes, espontânea como a lírica, nem por isso deixa de “pensar o mundo com a consciência extrema típica da filosofia”. Quer dizer: espécie de caniço pensante, sempre em riste, sempre antenado, o aforismo possui a força de um brocardo, de um axioma, tão grande é a “verdade” que encerra na sua forma lapidar, concisa, tanto de representar a realidade quanto de esboçar aquilo que ainda não é real. E é justamente aqui que entra em cena a poesia e a sua necessidade premente de “inventar a verdade”, para tanto lançando mão do que o aforismo possui de sentencioso, de definitivo, para melhor tornar verossímil as sensações inefáveis do poeta.
Embora bem mais lírica do que filosófica, nem por isso a poesia de Astier Basílio deixa de soar, em algumas circunstâncias, com a força de um aforismo. E o aforismo consiste numa espécie de insight, de epifania, de relâmpago, cuja breve, súbita e instantânea claridade, chega, algumas vezes, a lançar um raio de luz sobre o território sombrio do indizível e do inarticulado.
Ou, como escreve Marcelo Barkes, resultar “(...) numa formulação arguta – ora combativa, ora contemplativa –, apta a desvelar o mundo na ligeireza de um espasmo”.
Se não chegam a ser francamente combativos, os aforismos de alguns poemas do livro “Antimercadoria” sugerem uma experiência de vida acumulada, nem que essa experiência seja fruto da autobiografia do imaginário. Senão, vejamos os seguintes versos do poema “Mirante”: “Viver tem mais abismos/ que planilhas”. Ou ainda os versos a seguir, de “Irreversível”: “E viver é um risco/ no livre arbítrio de Deus”. E mais estes, de “Amiga,”, cujo título é parte integrante do poema: “A vida é uma rave/ cada homem um suicídio...”
Dispensando a muleta, a ponte do “como”, Astier é incisivo, afirmativo, pão pão, queijo queijo. Nada de subterfúgios ou de tergiversações, pois o aforismo está a exigir uma ação firme do poeta, mesmo que tal ação seja meramente contemplativa.
Em última análise, no entanto, o procedimento aforístico mal esconde a tentativa malograda de auto-afirmação do poeta diante das negativas do mundo. Daí a forma enfática, quase sempre peremptória, como ele se expressa. E isso, quem sabe, para ludibriar o sentimento de finitude, de fragmentação, de não estar de todo. A linguagem, então, enquanto “morada do ser”, abriga-o, acolhe-o, na medida em que o protege de ficar ao relento e à mercê das intempéries do mundo: “(...) o silêncio empacota/ abismos/ de quem cai e não alcança/ o último chão”.
Resta-lhe, em suma, escrever para se sentir existente; escrever para, nem que seja precariamente, instaurar uma espécie de cosmogonia a partir do caos, das ruínas, dos escombros de cada instante, de cada amigo que se vai, da vida, enfim, que flui e se esgota até mesmo nos poemas, como se cada um deles encerrasse uma despedida, um epitáfio inscrito na lousa branca do papel:
o fim,
feito carne,
e num plano de flores.
Cabem todos os meus mortos
neste velório,
que é e será sempre idêntico,
não importando
o quanto eu esteja próximo da perda.
Todos, em fila,
de volta
ao caixão do último rosto
que ganha a forma do que me falta
e do que me faltará.
Eles, um a um,
se movem
para o lugar
onde está a morte.
Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL