Para Juca. Foi um rio que passou na minha vida... A cidade de Valência, na Espanha, era atravessada pelo rio Turia, que transbordou e ca...

Águas de Valência

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Para Juca.
Foi um rio que passou na minha vida...

A cidade de Valência, na Espanha, era atravessada pelo rio Turia, que transbordou e causou uma inundação histórica nos idos dos anos 50. Após o desastre, o rio foi desviado e o seu leito transformado em um grande parque. Em suas águas, portanto, ninguém pode mais se banhar duas vezes. Porém, nas trilhas que ele deu origem é possível andar, a pé ou de bike, em estado de correria ou de contemplação. Escolhi a segunda opção.


Sítios históricos. Avenidas largas. Igrejas centenárias. Mercado repleto de guloseimas mediterrâneas. Tudo em contraste com a Cidade das Artes e das Ciências – arrojo, arquitetura e arte. Valência, cidade com tradição milenar e diversas atrações: La Lonja de la Seda (construção gótica, monumento histórico artístico nacional e patrimônio da Humanidade da Unesco); Plaza de Ayuntamiento; El Miguelette; Torre de Serranos, dividindo a cidade entre o sítio futurista e o tempo passado, tudo em harmonia e respeito.

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A convivência entre a parte antiga e a moderna tem seu charme em proporções estonteantes, o que faz de Valência a cidade dos contrastes. Na parte moderna, cada vez que passava pelo Oceanário, com forte cheio de sargaço e meio zonza dos tubos, túneis e engenharias, observei peixinhos coloridos, orcas, pinguins e tubarões, passeando por cima da minha cabeça). O Museu das Ciências Príncipe Felipe tem forma de espinhas. A Casa-Ópera tem forma de olho. São tantas e tantas outras formas gigantes, projetadas e representadas pela arquitetura de Santiago Calatrava, engenharia lunática e desafiadora do homem, que o meu olhar ficou em êxtase, marejados com os sentimentos de surpresa, silêncio e reverência.

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Na mesa valenciana: alcachofras; pão com tomates maduros fritos; chouriços; ovos, ovos e mitos ovos; águas de Valência; horchata (bebida leitosa feita de um tubérculo); gaspacho (sopa fria com ervas deliciosas); sangria, mojito, montaditos; frutas secas; queijos; pixton; paella valenciana; arroz negro e cavas; presunto – Ibérico, Serrano...

Experimentei a cidade belíssima em companhia de Julio Rafael, então superintendente do Sebrae, quando da participação no curso "Métodos e instrumentos para o planejamento integrado sob a visão do desenvolvimento sustentável", em julho 2012. O evento marcou o início do diálogo e do intercâmbio entre e o Sebrae e a Universidade de Valência, representada por Joan Nogueira Tur, diretor do Instituto Interuniversitário de Desenvolvimento Local.

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As duas instituições inauguraram uma empreitada grandiosa de troca de saber e de fazer, voltada à qualificação do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas para uma nova política de desenvolvimento no estado da Paraíba.

Sendo também convidada a participar do curso, utilizei os intervalos para ser turista acidental solitária e participar de atividades culturais, em que tive a alegria de reencontrar Betânia Leite Ramalho (uma amiga de infância das Lourdinas), então secretária de educação de Natal, e Maria Eulina Carvalho, colega também de infância e professora pós-doutora da UFPB. Em um dos passeios, visitei Gandia, cidade próxima à Valência, com suas praias banhadas pelas águas cor de anil do Mediterrâneo.

O encerramento do curso ocorreu num edifício restaurado da universidade antiga de Valência, com homenagens ao trabalho desenvolvido pelo coordenador do projeto, Julio Rafael. A cerimônia foi abrilhantada com um concerto – Coro de Mujeres A Cau d'Orella –, conduzido por Mònica Perales i Massana. Naquele momento, diante da beleza de uma igreja secular, onde os anjos disseram amém por tantos séculos, pudemos desfrutar do som angelical da Harpa de Úrsula Segarra e da força do canto feminino. Seguiu-se, então, um coquetel com caviar, montaditos especiais e iguarias. Cavas e outros vinhos fizeram a parte lúdica, em meio a diplomas, discursos e goodbyes. No largo lá fora, o verão europeu fervia com sua brisa fresca dos longos dias (anoitecia às 23 horas), o que deixava o tempo com uma outra dinâmica.


Aliás, o tempo de viagem é outro mistério. O tempo do sonho. O tempo em suspensão. Fuso horário de 5 horas à frente, levamos um tempo para nos adiantarmos, para depois, nos atrasarmos novamente. E como não somos relógios, nem ponteiros, nem sinos (que badalavam a cada hora... quem sabe por mim dobravam!), experimentamos do sono, da siesta e de um pouco de "des-locamento" espacial e temporal. "Des-orientação" essa que também se dava pelo fato de a luz do sol esticar-se noite adentro. Aqui nos trópicos nós temos o tempo tão bem delineado, e a duração do dia, das 6 às 6, faz com que o nosso lusco-fusco nos oriente ao anúncio da noite. Lá, sem essa luz-guia-solar, nos confundia dia-noite-dia, e claro, ficávamos perplexos, "des-orientados" por tempos e tempos, viajando literalmente no calor das horas.

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Durante a estada em Valência, visitamos o Parque Natural de la Albufera, com sua paisagem emblemática de grande valor econômico e ambiental. Lugar de córregos, riachos, arrozais, entrepostos, lagos, pântanos, e alagados. Num barco grande, lá íamos nós, conduzidos por um Ishmael Valenciano, que tinha no seu cão de guarda, um cachorro muy simpático e inteligente, com a missão de latir, rosnar, rodear a embarcação e se alvoroçar quando parávamos. No horizonte o sol se punha em tons magenta e uma brisa fresca nos arrepiava. Quando dei por mim, estava no meio de um lago gigante, cuja travessia demoraria uma hora, e o relógio marcava 10 da noite. Eu, com minha síndrome Titanic, meus pânicos de água, de barco e de travessia, enrosquei-me na echarpe e finquei o olhar n'A Outra Margem do Rio', esperando que o conto que tem esse nome e seu autor me distraíssem com a luz fúcsia da penumbra, sonhando com aquilo nos aguardava do lado de lá.

Ufa! Quando enfim “estacionamos” vi um lugarejo campestre e longínquo, com pescadores sentados em volta da praça a jogar baralho, vozes cortando o silêncio da noite, que já alta nos guiava. "El Saler", um restaurante lindo e típico, nos acolheu em noite de gala.

E por entre azulejos e simpatias nos acomodamos, para logo depois começar um desfile de iguarias: bacalhau, mexilhões gigantes e saborosos, azeitonas temperadas, pães deliciosos, anchovas, e enguias ensopadas, que eu passei, claro. Barco é barco, enguia é enguia (é cobra! Do mar, é verdade, mas cobra!). Jamais esquecerei do filme "O Tambor" (1979), adaptação do livro homônimo de Guther Grass, no qual, numa cena de arrepiar, alguém comia enguias inteiras e vivas! Quem teve a audácia de se arvorar na delícia garantiu que valeu a pena. Deixa estar!

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Fomos ao primeiro andar do restaurante-casa, para ver seu dono a maestrar três panelas gigantes de paellas: uma valenciana legítima (com os sabores do frango e do coelho); uma de frutos do mar; a terceira de arroz negro. Tudo em ritual: hora de mexer; de por o açafrão; de pingar; de tirar; de soltar e de servir. Confesso que mergulhei inadvertidamente nas três. Quando se trata de experimentar coisas e comidas, sou selvagem! E entre um gole de vinho, uma garfada do arroz que tinha acabado de ver na água e os cheiros de peixes e pescados variados, brindamos a tudo. Olé!

Ao fim de tantas coisas, sabores, cores e aprendizados, era chegada a hora das despedidas. Todos se foram, e eu, andarilha sempre querendo mais, botei a Plaza de La Reina no bolso e me danei num trem-bala para Madri, onde, por 6 dias, me perdi e me achei, completamente solitária, por entre a História madrilenha, manifestações políticas contra o El Gobierno, mais sangrias, mais artes nos museus, mais paellas, dança flamenca e mais tempo suspenso. Assuntos para um próximo texto.

Olé!


Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora

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