Diz-se que o autor homenageou o rio, na antiga Boêmia, hoje República Checa, que o nomina. Por certo fê-lo, sim. A paixão desses virtuoses pelas paisagens pátrias é combustível infinito e leitmotiv invariável das suas belas e perenes obras, a exemplo de Liszt e Wagner, o primeiro considerado o pai do gênero, porque criador da célebre transformação temática, base sobre a qual evolui o poema sinfônico.
Todavia, para mim “Vltava” – em louvor à sonoridade da língua natal do compositor - soa mais como uma metáfora da sina inexorável do belíssimo e sofrido Leste Europeu, trespassado, desde sempre, pelas cimitarras otomanas e pelas espadas dos cruzados. Massacrado em nome de Deus ou de Alá, pouco importa; Saladino e Ricardo Coração de Leão a disputar o imaginário Santo Graal, nas planícies de Arsuf. A gente contemporânea se pergunta a que se prestou a fé ao longo do processo civilizatório.
Mas, vejamos: o tema nasce remansoso, na voz afetuosa dos oboés e clarinetes, ribomba nas cataratas, ecoando na potência das tubas e tímpanos, e, afinal, turbilhona nas corredeiras, vibrando o sabor intrigante das flautas e da harpa, a fim de espelhar, creio eu, as conflituosas sensações do pequeno Bedrich, cujo peito juvenil ofegava com a sensibilidade olímpica da qual era portador. Recordando o inescapável Dostoievski, penso que os clássicos são como as orações: transformam o coletivo em individual. A propósito, a mágica do som é tal que, pelo aparelho auditivo, fui transportado para um domingo distante, cuja névoa da fantasia desorienta a bússola temporal e obnubila a precisão da data.
O sol acabara de se deitar no leito pedregoso da pequena rodoviária quando, agarrado à mão da mãe, saltando da marinete enlameada que chegava da capital, o garoto ouviu o insólito vaticínio ser berrado aos quatro ventos: “Os rios vêm com água! Muita água!”.
Ou seja, mesmo vencido o velho Paraíba, já ponteado, três das seis léguas tiranas até o destino, haviam de ser tiradas a pé. O jipe de seis portas ziguezagueante, que habitualmente completaria o trajeto até o vilarejo satélite, estacaria como uma mula no obstáculo seguinte: o rio do Meio, avarento no estio, mas danado de valente no inverno. E até o do Espinho, o próximo, mais sereno, não havia vivalma.
Pois as pontes, prometidas à farta por políticos mil, só existiam na vã esperança do alcaide do lugarejo esquecido pelo Criador, na esquina da província. Na vera, as travessias eram feitas a nado, por intermédio de cordas seguradas por cabras fortes, de musculatura titânica, um fincado em cada ribanceira. Primeiro seguiam os adultos mais pesados, que balouçavam, emergindo e afundando, ao ritmo das correntes. As mulheres, mãos postas rogando à Senhora Santana, seguiam pespegadas nas costas do nadador - um terceiro homem, bom de pernas e pulmões. Crianças por derradeiro, escanchadas pela frente, olhos desorbitados, corações dialeticamente oscilando entre o encantamento e o terror.
O leitor já adivinhou que, graças à vontade materna de chegar, o menino assustado vadeou as enxurradas assim, precariamente, para nunca mais... Dali por diante, o troar da enchente na noite glacial substituiu o papa-figo nos seus pesadelos. Além disso, a trilha lamacenta comeu os sapatos de festa. Ao raiar da segunda-feira, os pés sangravam numa bacia com água quente, perscrutados pelo olhar severo do pai. “Que insanidade foi essa?”, disse, enfim. E emudeceu por uma semana, até as águas baixarem.
Irenaldo Quintans é economista e escritor