Germano Romero é arquiteto e bacharel em música
setembro 23, 2020
Estava decidido. Após a visão que experimentou diante daquela cena, sua jornada se tornara imprescindível. Contrataria um barqueiro na manhã...
A ilha transcrita para a eternidade
Estava decidido. Após a visão que experimentou diante daquela cena, sua jornada se tornara imprescindível. Contrataria um barqueiro na manhã seguinte. E lançaram-se ao mar. O tempo sombrio convidava-os ao silêncio. A circunspecção de Rachmaninoff não lhe permitia palavra alguma. A visão que o motivara à travessia não saía de sua imaginação. Desde o dia em que viu a tela de Arnold Böckling, a “Ilha” se entranhou ao seu imaginário.
1m09s E assim começa, o idílico poema sinfônico, “A Ilha dos Mortos”, de 1908. O ritmo ondulado a simular as vagas que conduzem o barco pelo Mediterrâneo, logo se percebe no grave sussurro dos baixos e metais (1m09s).
3m03s 3m20s De repente, algo se move no mar, em dois arpejos ascendentes, (3m03s a 3m09s) mas incapaz de desviar a atenção do maestro em direção à proa (3m20s) e à paisagem que seu destino descortina.
5m09s Mais à frente, delicados violinos entoam a primeira aparição do tema principal (5m09s), pelo qual Rachmaninoff se lembra de como este e outros mares foram capazes de inspirar poetas, artistas, escritores, músicos, irmanados ao que conhecem o verdadeiro amor. Paixões, romances e respectivos ardis vêm à sua mente e crescem ao sabor dos instantes seguintes.
8m05s 8m24s Entretanto, a obstinação que o destinou a estar ali é mais forte justamente quando avista a enevoada silhueta da Ilha (8m05s a 8m25s).Imponente, sombria, já se ergue ao longe, anunciada pela contorção melódica cujo ápice se mistura às ondas, agora mais revoltas (8m24s a 9m30s).
9m35s 10m36s Imediatamente os ímpetos se aquietam (9m35s). É quando ele pede ao barqueiro para reduzir a velocidade. Precisa contemplar o que vê, com mais calma. Lentamente, o barco se aproxima para atracar, ralentando no ritmo dos baixos em pizzicato (10m36s).
10m48s Eis que a imagem da bela composição de rochas e ciprestes põe-se, enfim, à sua frente (10m48s), deixando-o completamente abismado. Ele quase não acredita que conseguiu finalmente estar à frente da Ilha dos Mortos. Uma intensa comoção, pouco a pouco, invade o seu espírito, refletida em nova aparição da essência temática, trazendo a lume todo o romantismo pujante que imprimiu em sua grandiosa obra preenche-o de entusiasmo. 12m04s 12m40s Como se as três sinfonias colossais, os quatro apaixonados concertos para piano, prelúdios e sonatas, acerbados pelas marcas de sua vida intensa, entre prazeres, dificuldades e decepções se fundissem à paisagem. Esse conjunto se agiganta em efusivo “crescendo” (12-44) e culmina com a visão agora divisada por completo, diante de si próprio sob a nitidez luminosa da orquestra em tutti, ao reiterar o fundamento motívico (12m40s).
13m26s 13m45s E o poema se engrandece pomposo (13m26s), mesclando beleza à fatalidade do contexto em que a criação de Bocklin se insere. Os temas agora convergem atônitos para tormentoso suplício (13m45s). Crescem profusamente (14m55s) até explodir nos tímpanos. 14m55s 15m45s E a epopéia sinfônica segue, encorpada pelo coro de metais, numa angústia existencial crescente que culmina ao evocar a fatídica célula de 4 notas percutidas na abertura da “Sinfonia do Destino”, a quinta de Beethoven, (15m45s) , composta há exatos 100 anos, em 1808! Um instante de êxtase.
16m08s 17m02s A seguir, o coração de Rachmaninoff se acalma (16m08s). Em introspecção resignada, as cordas ligeiramente trêmulas expressam o sentimento de missão cumprida (16m30s). O sonho realizou-se. É hora de voltar, sob o convite que ressurge no oboé (17m02s), acalentado por delicados trinados.
17m38s 18m33s As trompas soam nostálgicas e reforçam a iminência crepuscular (17m38s) que lhe sugerem o ocaso do idílio tão sonhado. No retorno, avista o mar (18m33s), mas é convidado ao derradeiro adeus (19m03s), fitando a Ilha que agora não é mais dos mortos. Perpetuar-se-á na lembrança de um dos cenários mais lindos que viu, tornando-o capaz de transcrevê-lo para a eternidade, no seu opus 29.
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