Eu sou dos anos 50: ainda peguei o final do apogeu da Era do Rádio. Em Campina Grande, quem orientava o comportamento musical das massas era o rádio. E o rádio daquela época era universal e democrático: tocava tudo: forró, fox-trot, valsa, samba, bolero, choro, tango, rock, mambo, jazz, calipso, orquestras americanas, música francesa, italiana. Ouvia-se, também, muita versão do italiano e do inglês. E os garotos que ouviam rádio acostumaram-se a ouvir tudo, sem nenhuma discriminação. Até o final de minha adolescência, não me lembro de ter ouvido uma única vez a palavra “brega” em relação a alguma música.
Depois, surgiu a canção moderna brasileira que se instalou num degrau superior ao da música anterior ou da música que não pertencesse ao seu horizonte. Em geral, quando um movimento artístico surge, ele põe em crise os movimentos que o antecederam, e os admiradores do movimento ajudam a espalhar e solidificar esta concepção excludente. Decorrente de comportamento similar, surgiu a utilização do termo brega para uma música de segunda ou de terceira classe, e como as fronteiras de classe são muito fluidas no universo artístico, muitas vezes o apelido de “brega” vem de uma mera circunstância, e a mesma música classificada como brega, na voz de fulano, vira ”cult” ou chique na voz de sicrano.
O cancioneiro brasileiro dispõe de alguns letristas de fina criatividade. Este primeiro time tende a ofuscar alguns letristas, cujas peças os consumidores mais sofisticados não querem colocar no panteão das obras de grande valor literário, mas ao menos não conseguem apagar o trabalho consciente e o esmerado artesanato de seus autores. Um desses letristas secundários é Jorge Faraj, autor de muitos sucessos, nos anos 40 e 50, entre eles “A Deusa da minha rua”, sucesso retumbante com Nelson Gonçalves, que foi regravado por Roberto Carlos. Já vi gente considerando brega esta música na voz de Nelson Gonçalves, mas não na voz de Roberto Carlos. Seria mera circunstância?
Passemos então à letra deste sucesso de Jorge Faraj em parceria com o músico Newton Teixeira.
A Deusa da Minha Rua
A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
Costuma se embriagar.
Nos seus olhos, eu suponho
Que o sol, num dourado sonho,
Vai claridade buscar.
Minha rua é sem graça,
Mas, quando por ela passa
Seu vulto que me seduz,
A ruazinha modesta
É uma paisagem de festa,
É uma cascata de luz.
Na rua uma poça d'água,
Espelho da minha mágoa,
Transporta o céu para o chão.
Tal qual o chão da minha vida,
A minh'alma comovida,
O meu pobre coração.
Espelho da minha mágoa,
Meus olhos são poças d'água
Sonhando com seu olhar.
Ela é tão rica e eu tão pobre,
Eu sou plebeu, ela é nobre
– Não vale a pena sonhar.
A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
Costuma se embriagar.
Nos seus olhos, eu suponho
Que o sol, num dourado sonho,
Vai claridade buscar.
Minha rua é sem graça,
Mas, quando por ela passa
Seu vulto que me seduz,
A ruazinha modesta
É uma paisagem de festa,
É uma cascata de luz.
Na rua uma poça d'água,
Espelho da minha mágoa,
Transporta o céu para o chão.
Tal qual o chão da minha vida,
A minh'alma comovida,
O meu pobre coração.
Espelho da minha mágoa,
Meus olhos são poças d'água
Sonhando com seu olhar.
Ela é tão rica e eu tão pobre,
Eu sou plebeu, ela é nobre
– Não vale a pena sonhar.
No nosso modo de ler, este texto está estruturado em três segmentos:
1. De “A deusa da minha rua” até “cascata de luz” – em que a figura feminina está em primeiro plano, mitificada pela fantasia do eu-lírico.
2. De “Na rua uma poça d’água” até “sonhando com o seu olhar” – em que o eu-lírico está em primeiro plano, dividido entre o sonho e a compreensão de seu horizonte chão.
3. De “Ela é tão rica” até o final – em que a concreta realidade sócio-econômica está em primeiro plano e apaga as possibilidades de sonho do eu-lírico.
2. De “Na rua uma poça d’água” até “sonhando com o seu olhar” – em que o eu-lírico está em primeiro plano, dividido entre o sonho e a compreensão de seu horizonte chão.
3. De “Ela é tão rica” até o final – em que a concreta realidade sócio-econômica está em primeiro plano e apaga as possibilidades de sonho do eu-lírico.
A letra desta canção possui uma arquitetura visível e parece ter sido construída como um perfeito silogismo (com suas premissas e conclusão) ou como uma estrutura dialética (com tese, síntese e antítese). A letra apresenta uma construção clara em três momentos: num primeiro momento, uma retórica idealista; num segundo e terceiro momentos, uma retórica realista e moderna. O autor da letra constrói a voz lírica (ou do personagem narrador, se preferir) em dois tons: um tom de exaltação, quando o objeto de enlevo é o foco do narrador, e um tom de humildade e recolhimento, quando o narrador fala de si mesmo ou de seu próprio universo. O tom de exaltação se faz acompanhar de uma retórica idealista (utilizando os elementos da natureza, em figurações hiperbólicas); o tom de humildade e recolhimento ou realista constrói suas figurações a partir do cotidiano, de lastro urbano e social. Os dois tons, por sua vez, são apresentados em homologia com dois espaços: o céu e o chão; o alto e o baixo.
Tese: o céu
No primeiro momento do primeiro segmento (que, nesta leitura, vai do primeiro verso até “É uma cascata de luz”), a figura que vai predominar é a hipérbole. A mulher é vista como um ser superior, uma deusa, cuja beleza se coloca acima da natureza, alcançando o ápice da beleza padronizada pela mitologia romântica, e é representada através de uma retórica idealista.
A lua, padrão de beleza de muitas séries literárias, aqui se embriaga com a beleza dos olhos da enamorada do eu-lírico. O sol, astro de vário uso metafórico na literatura de todas as épocas, vai buscar sua luz nos olhos da musa do eu-lírico.
O segundo momento do primeiro segmento é um momento de passagem em que a deusa está ao nível do chão, mas mesmo aí ela não parece ter compleição humana, pois embora ela exerça seu poder de sedução sobre o eu-lírico, a sua passagem é apresentada como “vulto”, parece não “pisar” na rua, que é apresentada como uma ruazinha em si mesma sem graça, mas no movimento de passagem da figura encantatória da deusa passa a ser “uma paisagem de festa”, uma hiperbólica “cascata de luz”.
Antítese: o chão
Este segmento central é um momento antológico do texto, quiçá do nosso cancioneiro. A metáfora central do texto, afastando-se de uma retórica da mitificação (que consistia na comparação da mulher idealizada aos objetos sublimes celestes), encaixa-se numa retórica realista e moderna, em consonância com o sentimento do eu-lírico, que se sabe humano, demasiado humano.
Descendo ao chão (em termos espaciais, mas subindo aos céus, em termos de qualidade da figuração), o autor parte da apresentação de uma coisa banal e desvalorizada, uma poça d’água, um elemento concreto, e a converte em metáfora abstrata: “espelho da minha mágoa” (em que a palavra “mágoa” repercute a palavra “água”) inaugurando um eixo metafórico que vai atravessar e estruturar todo o segundo segmento da letra. Na comparação que se segue, o “chão da rua” desliza para a vida, para a alma comovida, para o pobre coração. A vida do eu-lírico, vista por si mesmo e apenas em si mesmo, sem o sonho, apresenta-se como chã, mas, assim como a poça d’água é capaz de trazer o céu para o chão, o olhar enamorado e visionário do eu-lírico (“meus olhos são poças d’água/ sonhando com o seu olhar”) pode trazer o ser mítico do “céu” para o “chão”: ou seja: para perto de si. A metáfora “meus olhos são poças d’água” simultaneamente também permite que se imagine as lágrimas abundantes (outra vez a hipérbole) do pobre amador.
Síntese: o espaço social
Afastando-se do mundo onírico e pisando firme no chão da realidade, o eu-lírico percebe que, mesmo estando ele e a “deusa” ao rés do chão, há uma distância intransponível entre ele, “apenas um pobre amador”, e a figura de sua paixão, que continua “deusa” aqui na terra, pois na terra, há, entre eles, uma enorme distância econômica (“Ela é tão rica e eu tão pobre) e sócio-cultural (“Eu sou plebeu, ela é nobre”), portanto: “não vale a pena sonhar”.
Antonio Morais Carvalho é professor e poeta