— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!...
— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
Para compreender o poema, deve-se considerar que a tendência a dar alma a coisas, vegetais e bichos é comum em Augusto dos Anjos. O animismo presente “A árvore da serra” não seria, pois, novidade nas composições do poeta. O que chama a atenção é que esse animismo aparece no contexto de um conflito entre pai e filho.
A circunstância de um ter de morrer para que o outro sobreviva reproduz a cena do Complexo de Édipo – embora de forma curiosamente invertida. Na cena edipiana clássica, o pai é que é obstáculo à sobrevivência do filho e, por isso, deve simbolicamente morrer. No soneto, pelo contrário, é o filho que deve desaparecer para que o pai continue vivo e tenha uma “velhice tranquila”.
A afirmação inicial do pai (de que as árvores não têm alma) aparece como justificativa para que se corte o vegetal. Sendo o pai, historicamente, a voz da autoridade e do poder, não é um despropósito ver nessa justificativa uma contestação às crenças animistas do poeta. E uma contestação repreensiva, feita por quem, além de pai, constituiu-se para Augusto num dos primeiros porta-vozes das ideias positivistas. Segundo R. Magalhães Júnior, o pai de Augusto “era abolicionista e republicano, com uns laivos de positivismo. Além de ter pendores artísticos (...), possuía boa cultura humanística e grande curiosidade intelectual”. O Dr. Alexandre dos Anjos mostrava-se sensível ao ideário de Augusto Comte e seus seguidores. Ele, que instruiu os filhos desde a alfabetização, foi por anos professor de Augusto e certamente, de forma direta ou não, lhe passou essas ideias.
A dramatização presente em “A árvore da serra” traduz a dualidade em que se debatia o espírito do poeta – entre o racionalismo de base científica e a religiosidade que latejava em seu íntimo. Essa religiosidade, por sua vez, refletia o sombrio ambiente do engenho em que Augusto fora criado. Segundo Horácio de Almeida, “os filhos de Dona Mocinha revelavam-se extremamente medrosos”; tanto Augusto como os irmãos viviam “num meio de avisos sobrenaturais e almas de outro mundo, ainda agravado pela solidão do engenho”.
O Dr. Alexandre, com sua cultura e pendor científico, era uma força contrária a isso. E no conflito espelhado em “A árvore da serra”, o pai supera intelectualmente o filho. Vence-o naquilo de que o filho não podia se desvencilhar – a dependência ao animismo que fundamenta a sua visão mística do mundo. No fim da composição, a morte do vegetal “olhando a pátria serra” confirma que as árvores têm alma. Ou seja: o filho estava certo, mas paga duramente por isso. O preço de ter razão contra o pai é a morte, a culpa, a castração, da qual o corte da árvore é também um símbolo.
Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor