Estávamos apenas há dois dias na Itália e em tão pouco tempo coisas memoráveis já haviam nos acontecido. Muitas emoções já tínhamos vivido, mas algumas surpresas ainda estavam reservadas para nós. E que surpresas!
Em nosso segundo dia em Cesenático tomamos conhecimento, por meio de Fiorenzo Presepi, do hotel Dolce Vita, que Rimini, a cidade natal de Federico Fellini, ficava logo ao sul, a apenas meia hora de trem.
Rimini foi o cenário de boa parte dos filmes do cineasta italiano, os melhores, em minha opinião. Ele tinha grande fascínio pela cidade. Era uma espécie de Macondo, de Gabriel Garcia Marquez; ou da minha Misericórdia, guardadas as devidas proporções.
Acompanhei o trabalho de Fellini desde a minha juventude. Adoro seus filmes, todos enriquecidos pela música inconfundível de Nino Rota. Eu os vejo com boa frequência.
Na lista dos 10 melhores filmes da minha vida, "Amarcord" ocupa o primeiro lugar. Depois está "O Baile", de Ettore Scolla. Em seguida vêm os outros.
Sabendo da proximidade de Rimini, combinei com Ilma, minha esposa, aproveitarmos a oportunidade de visitar a cidade. Era o nosso último dia na região, pois viajaríamos para Roma na manhã seguinte. Um dos companheiros de viagem, que também admirava Fellini, resolveu nos acompanhar.
Passamos a manhã conhecendo Cesenático, em um agradável passeio, conforme já descrevi neste Ambiente de Leitura, na postagem "Recepção à moda italiana". Almoçamos mais cedo, e em pouco tempo desembarcamos, os três, na estação ferroviária de Rimini.
No birô de informações, procuramos saber quais os maiores pontos de atração do lugar. Em nosso íntimo, sabíamos que a maior de todas as atrações era a própria cidade! Havia muito o que visitar, naquele lugar especial, cenário de muitos filmes de Fellini. Ficamos interessados em realizar o "Amarcord Tour", promovido pela entidade de turismo local, um passeio pelo lugares marcantes da filmografia do cineasta. Todavia, restou-nos apenas visitar algumas das locações do roteiro, pois uma greve ferroviária estava marcada para as 9 da noite daquele dia. Fomos obrigados, assim, a limitar o passeio.
Nossa intenção era evitar surpresas na viagem de volta a Cesenático, ainda mais sabendo que os grevistas italianos param os vagões onde quer que estejam, numa estação ou antes dela. Se isso acontecesse, teríamos que concluir o percurso caminhando pelos trilhos. Por tudo isso, compramos, de logo, os bilhetes de embarque de retorno, com o vagão e lugares marcados.
Passamos o tempo visitando os templos sagrados de Fellini. O Grand Hotel era o mais expressivo, foi lá que "La Gradisca", principal personagem feminina de Amarcord, pôde esnobar toda a sua sensualidade, diante do "Il Príncipe", outra figura tipicamente felliniana.
As melhores cenas de Os Boas Vidas (I Vitelloni) também foram filmadas no Grand Hotel (dá até para “ouvir” a música de Nino Rota, enquanto escrevo). Sempre que podia, Fellini incluía o Grand Hotel em suas produções.
Quantas lembranças o hotel me evocou: o professor popular na bicicleta, descrevendo "le manine"; "la Volpina", ninfomaníaca; os camisas-negras se exibindo de forma ridícula; o acordeonista cego, tocando Siboney no casamento da Gradisca... Ahhhh!
O estabelecimento também foi cenário de um dos instantes mais ternos de "Amarcord." No filmes, o hotel está fechado devido ao inverno. Lá fora os rapazes realizam uma suave dança ao som da música tema do filme, simulando tocar instrumentos imaginários. Lindo momento, cheio de ternura. De arrepiar!
Seguindo para o centro visitamos o Cine Fulgor, onde Fellini teve a oportunidade de destilar todo o espírito moleque, anarquista, da sua adolescência. Algo ocorrido com a da maioria de nós.
Caminhamos pela rua onde havia uma tabacaria na qual o jovem Fellini recebe os favores adolescentes da dama proprietária, de corpo avantajado, num encontro hilariante.
Deixamos para o fim o passeio na praça Cavour, onde "La Gradisca" desfila o seu charme, sendo alvo de atenções masculinas expressivas, que hoje podem ser mal-interpretadas como assédio, mas que as mulheres de outrora adoravam, por se sentire atraentes. As italianas, pelo menos.
Ali também acontece a cena do motociclista misterioso, a percorrer em alta velocidade as ruas da cidade, especialmente a praça coberta de neve, em desafio às autoridades.
Lamento não termos tido tempo para visitar a fazenda onde o tio maluco de Fellini sobe numa árvore e grita, bem alto: “Voglio una donna! Voglio una donna!”. Ninguém consegue fazê-lo descer. Até que trazem a freira, diretora do asilo onde ele moraa, que tem metade do tamanho dele. Ela, porém, é muito braba: passa-lhe uma descompostura e ele desce!
Num restaurante da praça tomamos um vinho em homenagem a Fellini, e apressamos o nosso retorno à estação. Mas a maior surpresa estava reservada para o fim da nossa visita.
O acesso às plataformas da estação de Rimini se faz por um corredor subterrâneo, de onde sobem escadas tão íngremes que mais parecem os degraus de templos astecas. Preocupados com a iminência da partida do trem para Cesenático, subimos por essas escadas uma por uma, procurando o comboio. A nossa plataforma era a terceira, e chegamos lá em cima quase sem fôlego.
Encontramos um trem parado, todo escuro, as paredes cobertas de pichações indecifráveis, sem placa de destino nem outras informações. Ficamos parados, confusos, procurando alguma identificação. Foi quando ouvimos uma voz feminina atrás de nós dizer, em português cristalino:
— O trem para Cesenático é esse aí mesmo!
Olhamos para trás e vimos uma mulher escorada na balaustrada de uma das escadas de acesso à plataforma mal iluminada. Ela era magra, alta, pele bronzeada, bem maquiada, elegante e vestia uma calça pantalona de veludo cotelê verde e um bustiê róseo. Estava acendendo o seu cigarro numa sofisticada piteira madrepérola.
Aproximamo-nos e Ilma perguntou encantada, pois havia mais de três semanas que estávamos na Europa, sem ouvir ninguém falar o nosso idioma:
— Você é brasileira? De onde você é?”
— Do Recife — respondeu, com o sotaque típico dos habitantes da metrópole vizinha
— Que maravilha! Nós somos da capital paraibana. Faz tempo que está na Itália?
— Mais de cinco anos.
Nisso chega o nosso amigo, que estava mais atrás. Ilma, entusiasmada, fala pra ele:
— Olha, que beleza! Ela é brasileira e nossa vizinha, lá do Recife.
— Ah! Olá. Tudo bem? E o que você faz por aqui?
— A situação não estava boa no Brasil. Vim tentar a vida na Itália. Aqui tenho muito mais oportunidades.
— Você trabalha em quê? — perguntou nosso companheiro.
— Canto e danço nas boates da região.
Ouvindo isso, comecei a prestar maior atenção na conterrânea: boa altura, rosto ligeiramente anguloso, gogó evidente, maçãs salientes, testa idem, tudo realçado por uma bandana larga. Então resolvi dar a estocada final:
— Qual é o seu nome?
— Grêice — disse ela.
Touché! Aí resolvi deixar o grupo de brasileiros deslumbrados trocando elogios e informações de viagem e fui procurar o vagão “D” do trem para Cesenático. Ainda ouvi quando nosso companheiro falou:
— Puxa! Com essa voz, esse corpo e esse bronzeado, você deve fazer o maior sucesso!
Pano, rápido!
José Mário Espínola é médico e escritor