Sempre me intrigou o assunto da violência sexual contra as crianças. Pergunto-me: como um homem, — na maioria das vezes um familiar que supostamente deveria proteger (pai, padrasto, padrinho) — abusa de pré-adolescentes? Onde mora esse prazer de tamanha brutalidade? É distúrbio? Doença? Seja o que for, é abominável esse descompasso do sexo entre um adulto e uma criança, que não entende o que acontece, ainda mais aquele abuso estudado. Quais os caminhos? Quais as estratégias para atingir-se tão aberrante objetivo?
Coloco em destaque "Inocência Roubada" (2018), produção cinematográfica francesa, com roteiro e direção de Andréa Bescond, que também é a protagonista do filme. Quem não assistiu, evitando o assunto ora abordado, perdeu um dos mais fortes e belos filmes da temporada. Nessa obra, podemos ver, um pouco, a diabólica artimanha do assediador.
Um adulto da família, uma menina linda, mocinha, uma mãe competitiva e cruel, um pai amoroso, uma confiança na amizade... e pronto. Um afago, um elogio e, mais adiante, pedidos repulsivos. A criança intui que há algo de podre naquela abordagem, naquele toque, naquela invasão. Mas, quem há de acreditar numa leitura ainda indecifrável do ponto de vista de uma menina?
Aí é que o abusador se apodera do medo e da vulnerabilidade da garotinha. Mais doces, mais palavras de afagos, mais jogos de manipulação. Sabemos bem como é fácil cair em armadilhas , mesmo quando nos tornamos adultos. O tema de tal magnitude de violência mostra como a arte (no caso a dança) pode funcionar como fonte de cura. Dança contemporânea para expressar temas tão subjetivos, como a raiva, o abandono, a dor, a paixão.
Odette, a menina, assim se chama por conta do Lago dos Cisnes, o balé. Ela irá conviver com aquele monstro e se fechar no silêncio da solidão, mais tarde das drogas, da inadequação da vida e do sofrimento. Por meio da psicanálise, ela, já adulta, procura sem muita fé um pedido de socorro e aos poucos vai criando confiança na analista e formulando um quebra cabeça de uma narrativa fragmentada, a qual o filme traduz com rimas visuais,
diálogos entrecortados pelo movimento, som, música e sustos da dança. Um plié na fantasia e um rodopio para ressignificar a realidade. A cura pela palavra. Falando e dançando e desconstruindo a dor e o trauma. O espectador vai acompanhando as sessões de análise, os passos... e os abusos sofridos, tudo sempre em sintonia com a fala de Odette, que mistura real e imaginário (esse lugar ilusório onde o seu desejo de libertação se torna realidade).
O silêncio? É, sim, o sofrimento maior. As pessoas que vivenciam um abuso na infância quase nunca conseguem falar, denunciar o agressor. Ele sabe disso e se apodera desse trunfo. Tem a presa nas mãos. Nas mãos pela inocência.
O mais estarrecedor, no entanto, é a relação de Odette com sua mãe, que minimiza todas as dores da filha. Uma raiva secular. Uma competitividade das mais ferinas. Campo minado para que o monstro Gilbert passe desapercebido com os seus gestos invasores. A criança, perdida na impotência e no descrédito, completamente presa na teia do indizível, tranca-se no sofrimento dessa violação.
Não há coragem para a denúncia, mesmo diante do perigo de que o seu silêncio pode autorizar outros abusos.
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora