O vírus veio e trouxe para ela o fantasma da violência. O vírus é um depurador: quem era bom, melhor ficou; quem era ruim, em péssimo se transformou.
Ela se casou com uma imagem: o homem que a libertaria da ira tirânica de seu pai. Terceira filha com dois irmãos mais velhos, vivia sonhando com uma vida plena e livre. Desde cedo se tornou a protetora da mãe. O pai sempre repetia o refrão “o que está faltando a você?” quando, por poucas circunstâncias, a sua mãe reclamava do descaso tão constante naquele homem opaco.
Todos amavam as histórias de seu pai. Ele era carismático e vivia cercado de amigos. Um homem de muitas amantes. Ao ver sua esposa cabisbaixa, corroendo seus dedos nas contas de um terço, balbuciava cinicamente que ela era a número um, que ele nunca iria trocá-la por outras. Quanto às outras, ah, eram mulheres vadias, sem valor, "apenas para brincar". Então, para que tanto espanto da mulher e da filha sobre estas “brincadeiras” fora de casa?
Seus irmãos, os dois, se compadeciam com a mãe, mas tomavam a posição neutra, que nunca é "neutra" para quem sofre. A posição de neutralidade se assemelha àquela dos que presenciaram torturas, violência e nada fizeram. Não há neutralidade nos atos de violência.
O conselho dos irmãos era que ela não se metesse. A velha covardia se manifestava no bordão popular: "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". Mas não era só a mãe que padecia. Era o feminino da família. Era o lugar da violência, quase sempre no corpo da mulher.
Certa vez, ao defender sua mãe de um dos ataques de seu pai bêbado, ela levou um empurrão que lhe custou uma costela quebrada. Custou-lhe mais ainda: uma dor que nunca seria jamais curada, aquela dor sem lugar, uma dor que alguns dizem ser da alma. Dizem pertencer ao espírito. Os cientistas professam ser dor da mente.
Aos 17 anos passou para Engenharia. Não houve festejo em casa, pois aquele era um curso para machos. O pai recusou-se a pagar seus custos na capital. Ela cedeu e fez Pedagogia, numa cidade próxima, para ser professora, virtude das mulheres, sacerdócio, segundo uns incautos.
Aos 20 conheceu seu marido, filho de um casal amigo da família, e nele projetou a saída de casa. Ela teve seu casamento feito sob as honras da igreja, as bênçãos do pai e a fé que a mãe nutria em vê-la seguindo um destino diferente do seu próprio.
O casal ganhou uma viagem para uma capital próxima. Ela estava radiante com seu novo destino, com a saída daquela casa-situação. Quem sabe no futuro iria trazer sua mãe para viver com ela, como se pudesse livrá-la do eito de esposa-mãe-doméstica. A lua de mel foi tão desejada, tão almejada. Casou-se virgem como queriam seu pai e o respeitoso noivo.
No quarto do hotel, algo se modificou. O marido começou a beber, encharcando-se nos labirintos do álcool que tudo revela. Ela até tentou acompanhá-lo, numa tentativa de um romance jamais vivido. Ele entorpeceu-se. Segurou-a pelos braços, mas não com a ternura dos recém casados, e sim com a brutalidade dos que se animalizam sob os efeitos da bebida. Ela sentiu-se devorada. Sentiu-se estuprada na sua primeira noite. Saciado, ele deitou-se de lado. Ela chorou baixinho. Arrastou-se até o banheiro e percebeu-se ferida, inclusive por fora. Nem conseguiu dormir pelos roncos dele, pelos arranhões em seu sonho.
Ao nascer do sol, viu marcas roxas em sua pele clara. Mas talvez ele se recuperasse nesta manhã, a tomasse pela cintura e a cobrisse de amores como naqueles filmes da sessão da tarde. Ele acordou de mau humor. Seguiu o dia ensimesmado e quieto. Pediram o almoço no quarto e silenciosamente fingiram comer. À tardinha, ele a chamou pertinho e pediu-lhe que o servisse uma dose. Foram tantas, muitas. E assim ela foi de novo possuída com a bestialidade dos brutos. Naquela mesma noite ele a chamou com o nome de outra, marcando aquela mulher com ferro e fogo.
Ela seguiu assim por longos anos. Acusada de ser fria e seca, por nunca lhe ter dado filhos.
Com a quarentena, dormir com o inimigo foi uma novidade. Ele revoltou-se por estar em casa, por não ter como sair na noite, por não voltar de madrugada encharcado de álcool e perfume barato. Sobre ela, um olhar de negação e de ódio. Durante os dois primeiros meses ela foi submetida a toda sorte de humilhações e abusos.
Sem amigas, sem a mãe. No fundo ela culpava-se pelo desamor e entregava-se a ele como quem se dá ao açoite. Havia formas de delatar aquela situação, de pedir pizza ao 191, de mandar fotos com marcas de SOS nas redes sociais.
Mas não, nunca. Ela seguia o destino de tantas mulheres, de todas as mulheres de sua família. Ela era a castigada, a Eva traidora do homem que doou parte de si para criá-la. Da vida, só a vida crua a ser vivida. Nada de sonhos. A estas mulheres só a dor do parto e o conluio com a serpente, imagem do diabo. A vida era talvez o pagamento de uma pena. A pena de ter nascido mulher no meio de uma masculinidade total, sádica, tóxica.
O vírus trouxe a morte para tantos, mas para ela a morte era companheira diária. Quem sabe o vírus lhe tomasse nos braços, tal qual Cinderela no baile real, adentrando pela boca com suas gotículas mortais, como um beijo final, alojando-se em seus alvéolos e sufocando-a, como ela sempre esperou de um romance. O vírus, finalmente, arrebataria-lhe as células, vivendo de sua própria morte. A morte dela, a vida do vírus. A liberdade que não teve na vida ela encontraria no sono eterno de Tânatos, sono de vida longe da vida de morte.
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor