Foi dose forte de leitura e de influências no juízo de um adolescente bem nascido, mas de sensibilidade francamente exposta ao chamamento cultural e político de povos e de novas experiências libertárias.
Que dose foi essa? A que vimos desencadeada nos anos 1950, a partir do tiro no próprio peito de um líder sagaz pelo poder, mas visionário ao esperar que “cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência (...) Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto”. E de peito aberto disparou o processo. Vem o sol da cor de sangue na manhã de 24 de agosto a partir de quando irrompe uma nova consciência sobretudo na nação jovem. E numa sequência de comoções continentais como se a carta do suicida, um estancieiro burguês de olhos e ouvidos no povo, fosse remetida a todos os subdesenvolvidos. Jacobo Arbenz vira a página feudal na Guatemala, Fidel e Che descem a serra para expulsar o capital do império de cima das suas terras de fumo e açúcar, Allende ousa implantar a democracia socialista.
E no Brasil a propagação de tudo isso consegue isolar a liderança da grande imprensa com o recado novo que nos empolgava. Vêm os russos e mandam aos céus o Sputnik, num impacto de quem pode mais pode menos. A propaganda do socialismo real dá esse recado.
O menino bem criado, filho de deputado, terminaria encadeando esses adventos em sua formação de ser social. A velinha acesa no oratório da mãe, de fé empenhada na cura do pai com doença de sentenciado à morte, seria a primeira angústia religiosa. E daí, na sequência, a ideológica. Barreto Sobrinho, o pai, visitara a Rússia, devia ser um conservador como os seus pares da Assembleia, mas foi ao plenário e além dele em sua franqueza de observador. Enquanto um colega usineiro voltara da mesma excursão sonegando as mudanças sociais que vira, Barreto não mede as palavras nem a franqueza. Constatara a seu modo o que, um pouco antes, o sóbrio Graciliano Ramos certificara em livro.
Aos 51 anos, sedado na morfina, o pai deixa em seu olhar final uma confiança ou certeza que o filho não deixou apagar-se com a saída do caixão. Sentiu-se autorizado a pensar e caminhar livremente, não apenas por sua formatura, mas de consciência social formada, engajando-se numa idade em que os buços se espalham em grossas barbas como símbolo de uma revolta universal.
E eis-me cinquenta e mais anos depois, aqui e agora, de livro na mão a revolver no borralho do tempo a memória tumultuada que vi de perto, uns lances diretamente, outros mais temerários através da militância no jornal, tudo trazido, uma frase ansiando por outra, por Francisco de Paula Barreto Sobrinho, recém-saído do Covid-19. Saio da página para alinhavar a crônica, deixando-o debruçado numa ponte do Capibaribe, num dos anos de chumbo, à espera do passaporte que o levará ao exílio. Marco a página para o meu retorno deixando um mundo que se foi à minha espera.
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL