Volto à marca em que havia deixado, há duas semanas, a leitura de “Os olhos no exílio” de Francisco Barreto Filho.
O que, de começo, me prendeu ao texto não foi tanto a experiência a mais dos que sofreram, na carne e na alma, a repressão dos chamados anos de chumbo. Nesses trinta anos, pouco falta para se raspar o tacho dos horrores impostos pela tortura assimilada nos laboratórios mais sofisticados. Tortura física, tortura mental.
Muito se publicou e pouco se leu, eu mesmo ainda de ferida aberta por conta do “Combate nas trevas”, de Gorender; do livro famoso de Zuenir Ventura e, num plano acima de meu horizonte, o testemunho vivo de um prócer da Justiça, o ministro Evandro Lins e Silva em “O salão dos passos perdidos”.
Tem sido rica, sem dúvida, a sequência de depoimentos, testemunhos, juízos, imagens, páginas e páginas daqueles anos de entalo por que passaram o pensamento e a criatividade do país. Quem não morreu, não foi torturado nem preso, foi vigiado em seus passos ainda que restritos à sobrevivência.
E nesse passo vem se enquadrar, logo de início, a desforra libertária de Chico Barreto. Quantos sofreram o mesmo, e soltos, em liberdade, guardaram conveniência!? Não sei se para isso tenha sido necessário o autor passar o que passou, exilado na Europa, de bem nascido em seu país a operário improvisado no estrangeiro; educado, lido e bem lido, para ganhar altura suficiente de ver como ídolos de barro certos heróis da estatuária a serviço conveniente dos repressores.
Sua experiência como exilado enriquece-lhe a personalidade, mas o que sobressai ou lhe serve de plataforma é a experiência de humanidade adquirida na leitura. Barreto é desses que não leu por literatice, para enveredar pelos mistérios da arte; leu para se situar no mundo. E o vamos surpreender, a cada passo, a caminhar fora de sua terra, não pelo guia turístico, mas pelo que assentou, desde jovem, na práxis das ruas ou nos fundos de casa, de livro aberto num Bentrand Russel, num Camus, num Mounier, em tantos outros que não cheguei a ver ou pelo recado das telas como o de “Zorba,o grego” ou o de “Os companheiros” de Monicelli com Marcelo Mastroianni.
Espanta-me, hoje, numa idade que me permite um balanço, como se lia tão intensa e generalizadamente nos anos cinquenta e sessenta. Os jovens do Liceu, do Pio X, como clientela da febre editorial que se alastrava por todas as praças e bibocas do país. Em Alagoa Nova tínhamos um clube de leitura sem esse nome, espontâneo. Líamos em grupo e conservo vivos, vivíssimos, os parceiros de indagações e de emoções, quase todos mortos. Calcule-se numa cidade com a história cultural simbolizada por um jornal mantido pelo governo há 127 anos! O que não é dever da iniciativa privada, é dever do estado. O livro de Francisco Barreto, a par de seu espírito, de sua têmpera, vem dessas raízes.
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL