Pierre Rougon, personagem de "A Fortuna dos Rougon" (La fortune des Rougon), de Émile Zola, é um provinciano, cuja intenção é ser rico, sem demonstrar qualquer interesse pela educação que não seja utilitária. Quando sua esposa Félicité, com quem se casara num bom arranjo comercial com os pais dela, coloca na cabeça a ideia de que os filhos devem ir para a escola, ele responde, numa frase curta e incisiva sobre aprendizagem, que o latim era um luxo inútil (Le latin était un luxe inutile). Pouco importa que aqui Pierre esteja se referindo ao latim de modo denotativo ou simbólico. O que importa é o conceito, que persiste ainda nos nossos dias, de que só precisamos aprender coisas práticas, como, por exemplo, ganhar dinheiro.
O sueco Carlos Lineu (Carl Nilsson Linnæus, 1707-1787) criou uma taxonomia, que publicou em Systema naturae, obra de 1735, para a classificação dos seres vivos. Pondo ordem no caos classificatório, Lineu usou a nomenclatura binomial criada pelos irmãos Bauhin, popularizando-a por sua praticidade: cada espécie é classificada com dois nomes, o do gênero e o da espécie, que se tornam exclusivos, não havendo como fazer confusão. Assim, o lobo e o cão são Canis lupus; mas o nosso amigo fiel, o cão doméstico, recebe uma nomenclatura trinomial, por enquadrar-se na subespécie do Canis lupus familiaris (peço venia aos biólogos de plantão...).
Sim, leitor, a classificação é em latim, língua que unia todos os cientistas e eruditos à epoca, evitando que houvesse uma classificação particular na língua materna de cada um, o que impossibilitaria o reconhecimento da espécie e, consequentemente, o seu estudo. Mesmo que se dê um nome local ou proveniente de uma raiz, por exemplo, o termo deverá ser latinizado, o que permitirá seu uso pela comunidade científica.
No ensaio “Ciência e Sensibilidade”, Richard Dawkins (Ciência na alma: escritos de um racionalista fervoroso, Companhia das Letras, 2018) refere-se à diferença entre sistema analógico e sistema digital – este tem a vantagem de fazer que a mensagem se espalhe sem uma degradação grave; aquele, por causa das imprecisões cumulativas, tende a degradar e, por vezes, a anular a informação – e nos dá um exemplo interessante do código analógico, que reproduzirei literalmente:
“Quando a Armada espanhola estava sendo esperada, foi criado um sistema de sinalização para espalhar a notícia para todo o sul da Inglaterra. Pilhas de lenha foram montadas em uma cadeia de topos de colina. Se algum vigia na costa avistasse a Armada, deveria acender sua fogueira. Ela seria vista pelos vigias vizinhos, cada qual acenderia sua fogueira, e uma onda de fachos transmitiria a notícia velozmente ao longo de todos os condados litorâneos” (p. 104).
Interessante e criativo, não? É, mas não é original. Com certeza, Dawkins deve estar falando da invencível armada espanhola, organizada por Filipe II de Espanha, em 1588, para invadir a Inglaterra. Verificou-se, no fim das contas, que a “armada invencível” não era tão invencível assim, pois foi derrotada pelos ingleses.
Destinos bélicos à parte, voltemos à minha afirmação sobre a originalidade. Quem imaginou este código de fogueiras, para informação da vinda da armada espanhola, com certeza leu o Agamêmnon de Ésquilo ou simplesmente ouviu falar dessa peça trágica do século V a.C.
Nessa obra, Clitemnestra, para saber do término da guerra e da volta de seu marido, o poderoso Agamêmnon, para Argos, despacha servos para o topo de vários montes, a partir de Troia, de modo que fogueiras sejam acesas em sequência e a informem do retorno do marido.
É assim que ela pode preparar, junto com o amante Egisto, a morte do poderoso rei dos Argivos, no banho. Sempre uso esse episódio, em sala de aula, para mostrar que o grego já conhecia o sentido da informação on-line...
O roteiro do fogo está narrado entre os versos 281 a 316 da peça, fazendo um percurso por dez montes desde Troia até ser visto por um dos servos, que se encontra no topo do palácio, em Argos:
1. Monte Ida (na Frígia, nos arredores da Tróade);
2. Ilha de Lemnos, pedra de Hermes (em pleno Mar Egeu, ao norte);
3. Monte Atos (Calcídica);
4. Mirante do Macisto (monte da ilha Eubeia);
5. Euripo (próximo a Eubeia, mas na transição para o continente);
6. Messápio (monte da Beócia);
7. Citéron (monte entre a Ática e a Beócia);
8. Monte das Cabras Errantes (Megárida);
9. Promontório do Estreito Sarônico (próximo de Trezena);
10. Monte Aracneu (Argólida);
11. Visão do fogo chega a Argos, ao palácio de Agamêmnon.
O conhecimento nunca é demais. Procurar saber é o que nos dá sentido para continuar a viver, pois sem a inquietação, que continuamente impulsiona o nosso raciocínio, estaríamos, provavelmente, nas árvores ou nas cavernas. Não seríamos Homo sapiens sapiens, faríamos jus ao já obsoleto termo Homo troglodytes. Por mais que possa parecer a muitos que existe um saber desnecessário, haverá quem encontre um uso para ele. O aprendizado não é só uma satisfação pessoal, ele nos faz encontrar vias possíveis para a nossa existência. E, quem vive, obsessivamente, se perguntando qual a utilidade dos estudos clássicos deveria dirigir esta pergunta aos ingleses e a Lineu.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL