Foi um fato que me chamou tanto a atenção que até hoje vive na lembrança. Vez em quando ainda me aguça a curiosidade. Aconteceu por ocasião...

O púlpito

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Foi um fato que me chamou tanto a atenção que até hoje vive na lembrança. Vez em quando ainda me aguça a curiosidade. Aconteceu por ocasião da festa de inauguração do busto do poeta Augusto dos Anjos, na galeria que tem o seu nome, no centro da capital paraibana.

Um engraxate me fez questionar, intimamente, a que poderia ser atribuída à sua decisão de participar daquele evento com tanta atenção e notabilidade!

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Presenciei os cumprimentos, os discursos, coquetel, abraços e congratulações, mas sem perdê-lo de vista. Carlos Maia, dono da ideia da instalação do busto, não desfocou o olhar para o púlpito, na hora dos discursos e saudações, naquela noite.

Duas horas depois, o evento chega ao seu final. O local estava começando a ser esvaziado. Quase sem mais nenhum convidado, Carlos Maia, com o olhar aligeirado, perguntou em voz alta:

— E esse púlpito aqui?!

Nesse exato momento, o engraxate acelerou-se e se aproximou do púlpito com um ar de impulso, como a querer balbuciar algo vindo espontaneamente do seu interior. Carlos observou logo a disponibilidade na expressão do seu olhar e imediatamente dirigiu-se a ele:

— Poderia levar esse púlpito até a ASPEP?

O engraxate não contou conversa. Fez logo gestos para pô-lo na cabeça, e o fez sem ao menos perguntar se era distante ou se era perto o seu destino. Achei aquilo diferente! Curioso! Em certo momento, pensei sério. Pensei no misto da inesperada atitude, somada à realização, incorporando-se não só ao cerimonial do evento, mas aos restos de energia que ainda acendiam algumas almas por ali, naquele momento.

E lá se foi o engraxate, andando na noite, sem disfarçar o hermetismo de sua satisfação. E eu o imaginei, com os pés sobre o púlpito, conduzindo a sua satisfação misturada com migalhas de palavras soltas - quem sabe? - que sobraram daquele móvel de madeira, orvalhando o próprio suor do rosto, restos da festa de Augusto, cheios de segredos, entranhados, tantos e calados.

Segui com Carlos Maia a curta trajetória. E, quando chegou ao endereço recomendado, o engraxate balbuciou:

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— “Pronto,doutor”! E respirou fundo os ventos que por ali passavam, deixando transparecer um clima de serenidade e alívio, ao invés de cansaço e cobrança.

Voltando-se para o engraxate, Carlos perguntou:

— “Quanto foi? Sim! Quanto lhe devo”?

Com menos de três segundos, o engraxate lhe respondeu, quase em tom de discurso:

— "Não é nada, doutor. É a minha ajuda! Já que não ajudei com dinheiro, que eu não posso! É a minha contribuição. Eu também “apreceio” Augusto dos Anjos”!

Carlos Maia, surpreendido e com ligeira inibição na fala, retirou, devagar, a mão que já estava dentro do bolso e, em seguida, procurou gratificá-lo, exprimindo um “muito obrigado!”, com timbre emocionado e reconhecedor.

O engraxate deu boa noite e saiu lentamente, andando devagarinho, tranquilo. Parecia escovar, alegre, os ventos que lhe sopravam, lustrando a noite com a luz do seu mais autêntico e humilde encantamento.

Nunca vi coisa igual! Um final instigante; o olhar dardejante de Carlos, e o fascínio do engraxate, fixado na festa de Augusto. Segui, observando os seus sapatos sobre as calçadas, andando com os laços tênues, amarrados naquela noite imensa. Quanta profundidade há nas pessoas simples! Fiquei olhando-o até desaparecer na esquina. Voltei para casa com a impressão de que nele havia um certo jeito "augustus", um jeito de "singularíssima pessoa", surgindo por entre as sombras do poeta, "sou uma sombra"... Como se aqueles gestos seus também tivessem vindo de outras eras... Distantes.


Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista

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  1. O poeta cronista faz poesia com a realidade cotidiana com prosa poética. O cronista-poeta vê o que os outros não veem.

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  2. Muito bonito.Em gestos pequenos vê-se também uma alma de poeta.

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