Noel Rosa tinha voz miúda. Não era propriamente uma voz e nem poderia ser, num momento em que reinavam grandes intérpretes como Chico Alves, que gravou muitas de suas músicas. A parceria entre os dois foi ao ponto de Noel pagar com músicas um carro, que Chico Alves lhe vendeu.
A voz miúda de Noel, no entanto, lhe dava uma vantagem sobre outros intérpretes. Parece-nos ver em seu modo de cantar aquilo que ele atribui à maneira de “dançar dando pinotes”, do malandro, na música “Cinema Falado”.
É claro que em algumas músicas, Noel mostra sentimento de dor e pesar, acompanhando o conteúdo da letra. É o caso de “Silêncio de um minuto”, que relata um amor derrotado pela traição.
Luto preto é vaidade,
neste funeral de amor,
o meu luto é a saudade
e saudade não tem cor.
neste funeral de amor,
o meu luto é a saudade
e saudade não tem cor.
As metáforas para este funeral de amor são refinadas, fogem ao padrão de um choro pela perda amorosa e mais ainda pela traição. Assim é que, para definir o funeral de amor, Noel trata a situação da seguinte maneira: a ingratidão é a grande vitoriosa na morte desse amor. E para definir o sepultamento da ilusão amorosa, assassinada pela traição, vêm à tona duas brilhantes metáforas:
Tu cavaste a minha dor
com a pá do fingimento
e cobriste o nosso amor
com a cal do esquecimento.
com a pá do fingimento
e cobriste o nosso amor
com a cal do esquecimento.
Nem preciso falar da assonância das vogais nasais, presentes em toda a música...
Com a composição de “Cabrocha do Rocha”, Noel demonstra, de uma só vez, a sua genialidade e sua veia bem-humorada. A canção é fruto de uma parceria com Sílvio Caldas, que ironizava o jeito de o carioca falar, puxando o “s” como se fosse um “x”. Encontrando Noel no Café Nice, Sílvio Caldas falou do fato e, conhecendo a verve do jovem compositor, sugeriu que ele compusesse uma canção. Noel respondeu que se Sílvio fizesse a primeira, ele faria a segunda parte. No dia seguinte, Sílvio Caldas apresentou-lhe a primeira parte da música:
Eu tenho uma cabrocha
Que mora no Rocha
E não relaxa.
Sei que ela joga no bicho,
Que dança maxixe,
Que dá muita bolacha.
Que mora no Rocha
E não relaxa.
Sei que ela joga no bicho,
Que dança maxixe,
Que dá muita bolacha.
Tenho um filho macho
Com cara de tacho
E além disso é coxo.
Ele me faz de capacho,
Qualquer dia eu racho
Este carneiro mocho.
Com cara de tacho
E além disso é coxo.
Ele me faz de capacho,
Qualquer dia eu racho
Este carneiro mocho.
Se Deus saísse de seus cuidados e viesse me perguntar o que eu gostaria de ter feito na vida, além de ser professor, eu lhe diria que, sem querer ter sido Noel Rosa, eu gostaria de ter feito algumas de suas músicas, como “Os três apitos”, “Palpite infeliz”, “Cinema falado”, “Quando o Samba Acabou”, “Filosofia”, “Século do Progresso” e “Voltaste”.
“Voltaste” é, para mim, uma das grandes músicas de Noel. A orquestração parece a dos filmes americanos românticos dos anos 40-50. O tom preocupado da personagem não consegue esconder a ironia e o seu ressentimento, além de um pouco de humor na construção do fato por ela apresentado: o retorno de um malandro para perturbar a paz do subúrbio, após uma temporada no centro da cidade, onde nada achou de novo.
O malandro não denominado, alvo da preocupação de sua (ex-) amada, já pôs em estado de alerta, por exemplo, o guarda-noturno que, se “apitava ressonando” na sua ausência, agora já “anda alerta, envergando o seu capote de lã”. Tendo falhado o seu projeto, eis que o malandro retorna e a paz do subúrbio, construída durante a sua ausência, decididamente, é quebrada pelo valentão, sem dinheiro e mau pagador, que tapeia o açougueiro e solta sobre o prestamista o seu cachorro não menos valente. A preocupação da “ex” está no fato de que o malandro não virá apenas para tirar a paz do subúrbio – “Voltaste para fabricar defunto” –, mas também porque sua pretensa valentia deverá “fornecer assunto aos diários da manhã”.
A mágoa se traduz de várias maneiras, na entonação grave de “Voltaste”, palavra-tema e anafórica que abre a música (minha ignorância musical me impede de reconhecer os “dós”, os “rés”, os sustenidos e os bemóis, mas apelo para o perdão e para o conhecimento dos amigos Germano Romero e Samuel Cavalcanti); na tonalidade anasalada da voz de Aracy de Almeida, e, principalmente, na temática. O malandro vai para o centro da cidade com a intenção de expandir a sua atuação. Lá, ele percebe que “não há nada de novo”. Na cidade, a malandragem, supõe-se, é muito maior, além da concorrência, há o perigo de prisão, fato que fica subentendido na música, tanto quanto o seu envolvimento com outras mulheres, enquanto a “ex” ficara no subúrbio.
A “ex” traduz bem o seu ressentimento, ao dizer que “falhou o teu projeto, não te dou o meu afeto, quando eu quero eu sou ruim”. Não dar o afeto, mas receber o malandro, o que se subentende da ironia em “confessando sem vaidade que a tua liberdade é viver bem preso a mim”, ecoa na música “Cadeira Vazia” de Lupicínio Rodrigues, de que se pode até ouvir algum acorde ou harmonia incidental (novamente, fala o analfabeto musical. Deixo, portanto, a constatação para os amigos já citados, pois só estou falando do que o meu ouvido pôde captar). Infelizmente, não tenho como saber qual a música que veio primeiro, mas tenho quase certeza de que foi a de Noel, tendo em vista que Lupicínio era ainda desconhecido quando conheceu o já famoso Noel Rosa.
“Voltaste” também ecoa no próprio repertório do compositor, tendo no samba “O Século do Progresso” (ambas as músicas são de 1934) uma espécie de complemento que a finaliza, de modo consciente ou não. O “valente muito sério” dessa música era “professor dos desacatos e ensinava aos pacatos o rumo do cemitério”.
Noel, irônico, como é o seu costume, vai construindo a música da malandragem, para desconstruir o próprio conceito de malandragem, como já fizera com “Rapaz Folgado”, samba da famosa polêmica musical com Wilson Batista, verdadeira pérola da música brasileira.
Se Noel Rosa fosse vivo, em lugar de submisso e invertebrado, como tantos artistas atuais, estaria se deliciando. Pelo seu caráter chistoso e debochado, ele teria à sua disposição todo um mar de lama que se recusa, há anos, a nos deixar e no qual, uns, atolados até o pescoço, recusam-se a acreditar, enquanto outros torcem para a sua permanência. Que beleza ter alguém como ele para dizer na cara e com um riso debochado, como na música “Você Só… Mente”:
Pois sua maior mentira
é dizer à gente que você não mente.
é dizer à gente que você não mente.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL