Não foi à toa que o Concilio Vaticano II realizou significativa (e oportuna) revolução religiosa, por volta da década de 60. Estudava eu ainda no Seminário quando o Latim foi abolido nas missas em diversas partes do planeta. O objetivo básico consistiu em tornar acessível a cerimônia aos principais interessados, os chamados “fiéis”, facilitando-lhes a compreensão das palavras pronunciados pelo padre. Os eventos passaram a ser realizados com o pároco olhando para as pessoas, no lugar de postar-se de costas para elas. Foi, sem dúvida, um dos acontecimentos mais importantes da igreja católica no século passado.
Mas, o Latim, tendo sido tenaz por seu classicismo e sua tradição, e sendo língua-mãe de vários idiomas, inclusive do Português, ainda tem espaço na comunicação, em várias esferas. Setores da vida pública brasileira ainda salvaguardam os seus verbetes. Apesar de língua morta, não há interesse em deixá-la repousar sob sua lápide, onde a morte, já declinada, goza agora o sono do seu jazigo perpétuo.
Alguns movimentos, a exemplo do que já houve em São Paulo, já encetaram uma série de ações para suavizar a aspereza dos termos alatinados que são utilizados, inclusive, na atividade jurisdicional. As expressões podem ser substituídas por outras do idioma pátrio, com a mesma força argumentativa, com a vantagem de ficar isentas de encenações e trapézios, que ilustram excessivamente as peças jurídicas. No Direito, as citações em latim obstruem a visão clara da contextualização do processo. O abuso dos verbetes latinos abre uma comunicação paralela entre juristas e gera danos que podem deixar o interessado no resultado dos litígios à margem da discussão. Além disso, os textos fluem no leito da prolixidade viciosa e na longuidão desnecessária ou repetitiva, o que estabelece um mal crônico.
E o que significaria suavizar a aspereza dos termos alatinados? Nada mais que evitar termos esdrúxulos, a exemplo de:
Vale o registro, também, da arrepiante expressão "busílis", de origem controversa, que juízes e advogados vez por outra lançam mão, quando querem se referir ao "ponto central da controvérsia" ou a uma "dificuldade factual ou jurídica a ser resolvida".
Ab initio = desde o começo, inicialmente;
Peça ab ovo = petição inicial;
Ad cautelam = por precaução;
Animus furandi = intenção de roubar;
Causa petendi = causa de pedir;
Ex legibus = conforme as leis;
Ex vi legis = por força da lei;
Improbus litigator = litigante desonesto;
Onus probandi = encargo de provar;
In limine litis = no começo da lide;
Mandamus = mandado de segurança;
Quantum debeatur = a quantia devida;
Sponte sua = espontaneamente;
Vexata quaestio = questão em debate.
Peça ab ovo = petição inicial;
Ad cautelam = por precaução;
Animus furandi = intenção de roubar;
Causa petendi = causa de pedir;
Ex legibus = conforme as leis;
Ex vi legis = por força da lei;
Improbus litigator = litigante desonesto;
Onus probandi = encargo de provar;
In limine litis = no começo da lide;
Mandamus = mandado de segurança;
Quantum debeatur = a quantia devida;
Sponte sua = espontaneamente;
Vexata quaestio = questão em debate.
Atenuando o excesso de rebuscamentos ilustrativos dos instrumentos processuais, todos lembrarão que a vida é simples e que, assim como existe a linguagem da música, do amor, da razão, dos olhos, gestual, afetiva ou intelectiva — tão simplórias e que não perdem sua comunicabilidade interna — pode existir também a linguagem escorreita dos escritos forenses, acendendo um clarão na compreensão dos textos, sem sacrificar o respeito, a postura consciente, pois o idioma é o emblema, a bandeira, enfim, a continuidade de uma nação.
Lembro-me quando a boemia deitava e rolava pelas ruas da capital paraibana, um advogado recém-formado, com um anel vermelho (tipo chuveiro) atolado no dedo, olhou e abordou uma dupla de cantores que se apresentava numa churrascaria do bairro boêmio de Jaguaribe. Dirigiu-se a um deles e falou que queria que eles cantassem um bolero:
— “Moço, gostaria de que vocês levassem Perfídia, data vênia”.
Quando o advogado se sentou, os dois músicos se entreolharam. Com pouco tempo, um deles se dirigiu à mesa onde estava o "causídico" e falou educadamente:
— “Doutor, nós só vamos cantar 'Perfídia'. Aquela outra música que o senhor pediu a gente não ensaiou ainda não”.
— Mea culpa?!
Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista