Baraúna! Assim o chamavam alguns amigos e conhecedores da longevidade de certas árvores da flora brasileira. Referiam-se à força vital que ...

Meu pai era uma Baraúna

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Baraúna! Assim o chamavam alguns amigos e conhecedores da longevidade de certas árvores da flora brasileira. Referiam-se à força vital que tinha o meu pai, o seu vigor, tal qual essa árvore nordestina da família das “brauna Schott”, ainda hoje conhecida pela sua resistência ao tempo e à vida.

Interponho-me ao seu passado neste presente, abastecido de lembranças, razão de meu maior orgulho, ao saber que o espírito também sobrevive sem sofrer as inexoráveis sequelas que provocam a separação e a distância, quando dentro não deixamos morrer um ser querido e iluminado.

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Configuro-o também, pelas ruas ainda escuras do dia amanhecente, a caminhar até a padaria de Seu Mariano, na Rua do Livramento. Era lá onde ficava proseando com os padeiros, enquanto o forno fermentava os pães que os levaria para casa numa mochila branca. Aquela mochila, se eu pudesse, tê-la-ia ao meu alcance para poder, mais ainda, guardar nela todo o gosto das manhãs, cujo trigo especial alimentava a sua vida, desencadeada em grande multiplicidade.

Esse homem simples e translúcido, carrancudo e brincalhão, consumia as suas horas num ritmo de mestria e sapiência, não nasceu para figurar nas colunas sociais, mas que sabia olhar com esmero para o mundo ao seu redor, enfeitado de filhos, netos, bisnetos, noras, genros e a mulher que amava e era companheira de todos os seus passos, a quem ele chamava de Mendonça.

Quando entrava uma criança em sua loja, acompanhada do pai ou da mãe, dependendo do movimento do balcão, logo ganhava dele uma graça. Tirava de dentro do cofre um palhacinho em forma de luva. A cabeça oca, de porcelana, entrava no dedo do meio, ao vesti-lo na mão direita, enquanto os outros dedos faziam os movimentos das mãos. Com olhos atentos, os meninos assistiam àquilo e logo se contaminavam de uma alegria sem par. O momento também enchia-o de uma satisfação indizível. Era como se o apurado do dia não significasse nada se não houvesse esse tipo de animação, apurando-lhe a vida, para assomar-lhe ao peito um instante lúdico. Juntos, era o comerciante e o comediante, em suas horas de rara descontração. Sabia sorrir e gargalhar nas horas que o tempo lhe reservava. “Sorrir profundamente”, como diria Milan Kundera.

À tardinha, conduzido pela lenta escuridão, chegava a casa e logo após o jantar, deitava-se em uma rede que o esperava em seu quarto. Ali os seus cochilos faziam o balanço do dia.O abajur do seu quarto era um candeeiro a querosene que lhe servia de bálsamo, e lentamente embalava o seu cansaço.
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Era a sua meia-luz invadindo todo o seu canto com um cheiro dolente de combustível que, aos poucos, o levava ao outro dia.

Na mesa, onde sempre nos encontrávamos, eu assistia à sua refeição, geralmente um saboroso peixe ao coco, trazido da Parahyba, como se chamava naquele tempo a capital paraibana, hoje João Pessoa. Foi naquela mesa onde me ensinou a comer quiabo e a receber com um gosto depurado a atenção que me ofertava. Para mim, era um atrativo imperdível, esses pequenos “nadas”. Vê-lo almoçar, com sapidez, e admirável serenidade, era uma coisa habitual. Não somente a sua refeição, mas ele trazia em si a fascinante qualidade ligada a tudo que se propunha fazer. Eu gostava de observá-lo. Tinha a mania de lê-lo. É na condição de menino que a gente, antes de aprender a soletrar as primeiras palavras, aprende a ler no rosto do pai a tenra expressão de seu rosto e a evolução de todas as suas horas.

O político, autodidata e tribuno Josué da Silveira, fazia uma jocosa referência quando se referia aos caracteres de meu pai: “Jorge gosta mesmo é de fazer menino e descascar cana.” Éramos mais de dez! Realmente, gostava também de repartir, com visível doçura, os roletes de cana-de-açúcar com os filhos, quase todos do mesmo tamanho e da mesma idade. Ainda sobrava tempo para dar atenção ao seu gato “Manhoso”, um angorá de estimação, presente de Lena, sua nora, no dia de seu aniversário. No balanço morno de sua rede, raro não se via “Manhoso” estirado no seu colo, dormindo, debruçado sobre a sua noite.

No inverno, o tempo frio nos obrigava a dormir cedo. Ninguém saía de casa, recolhíamos à boquinha da noite. Da lagoa, que ficava por trás de minha casa, vinha o som do coaxar dos sapos entrando pelas frestas do telhado da casa e compondo uma cantiga saudosa que se completava com o ritmo dos pingos das goteiras desgarrados do telhado, e caídos dentro de casa. Eles irrompiam no silêncio o som das bacias que aparavam a água daquela chuva que caía, mais tarde entrecortados pelo tique-taque dolente do relógio de parede.

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Foi naquele tempo que aprendi que as horas não se vão à toa. As árvores também não. Muitas já nasceram e cresceram por aqui. Outro dia ouvi uma queixa de um filho da cidade de Lagoa Nova, terra natal de minha mãe, e onde eu passava as férias do Seminário . Ele recordava o grande Pirauá, o qual tive a felicidade de conhecer. Era uma árvore centenária com uns trinta metros de altura. Corpo esguio, discretamente sensual, fazia bailados por entre os ventos e era vista de qualquer ponto da cidade. Foi extinta pela insensibilidade humana. A mão brutal e rude do homem cortou as suas alegrias, feriu a sua terra, brecou a sua dança. Hoje não há mais ninguém que possa voltar os olhos para o céu de seu corpo, vê-la balançar no vento, senão pelos olhos da lembrança, da imaginação.

Lembro-me - mais uma vez - do gigante e frondoso tamarindeiro do cais da lagoa de minha terra! Fui contra a sua derrubada, e senti repúdio daquele crime hediondo e premeditado, pelo qual já chorei as suas mágoas.

Há algum tempo, foi o caso da Gameleira do Roger. Segundo Flávio Dias e Graça Coutinho, já fez sombras a muitas histórias, portanto, era uma árvore de tantas reminiscências! Caiu com a chuva. Com ela desabou uma parte do Bairro do Roger. Ficaram apenas os versos de Pedro Coutinho e de tantos outros poetas, aguando as suas lembranças.

Do meu pai, ficou muito mais que isso! Considerado “Baraúna”, transcendem as marcas de sua integridade, um cheiro ativo de perpetuidade refletido no privilégio de ainda tê-lo internalizado aqui. Aliás, porque é árvore que resiste ao tempo, e faz sombra até mesmo longe do agasalho de suas frondes.


Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista

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  1. Parabéns,vc é um homem sábio.

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  2. Se eu não o tivesse conhecido, assim como o cenário dessa história, seria fácil idealizar, por q vc escreve muito bem Saulo.Só repetindo o q digo sempre.Abraço!

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