"O demônio pode citar as Escrituras para justificar seus fins".
A frase de William Shakespeare no "Mercador de Veneza" é perfeita para definir o atual momento da vida planetária.Às cinco da manhã, ligo o computador para ler as notícias do Brasil. Elas me afrontam ao proclamar a extensão de nossa miséria. A monstruosa teia de extremismo enreda o país. Não respeita a dor alheia — mesmo que esta seja inenarrável — e não se acanha de usar a infância violada como bandeira política.
Ponho a chaleira no fogo e algo como uma dor lancinante vai tomando conta de mim. Sinto que a aparentemente infinita caixa de tragédias ainda não se esgotou. Continua a expelir seu arsenal de males. A feiura desse conteúdo tenta sufocar minha titubeante esperança.
Contra os fios frágeis de meu otimismo lutam as redes sociais, os sites de notícias, as mensagens desencantadas dos amigos e tudo a que assisto de longe. Eles me narram com extraordinária clareza o cenário de caos, onde a violência campeia e os linchamentos – reais e virtuais – vão se tornando cada vez mais frequentes. Noto o quanto é fácil ceder ao populismo, lamento ver o diálogo perdendo espaço para o argumento raso e a agressão. E espanto-me ao constatar com que facilidade valentões, boçais e gente grosseira seduzem os incautos.
Faço o chá preto – forte como o de George Orwell – enquanto continuo a ler as postagens dos amigos no Facebook. Reflexão, leitura e bom senso vagueiam, perdidos, entre modismos e atos teatrais. O espetáculo fascina, as hashtags e palavras da moda idem. Todo mundo é militante e está coberto de razão, além de ocupadíssimo salvando o mundo. Já não há espaço para os Luther Kings. A raiva ruge, exige atos de guerra. Moderação não serve para destruir o establishment (onde foi mesmo que vi isso antes?). A coisa tem que ser na base de destruição atômica, napalm e empalamento. E tome generalização tosca. Às favas toda lógica.
Assim, seguimos babando ódio nos teclados, acreditando que vulgaridade é sinônimo de opinião forte ou simplesmente confundindo sinceridade com rispidez.
Já não basta a crítica severa: é necessário purpurina nas palavras ocas, o brilho falso de um mundo de pós-verdades. É de fato um universo peculiar esse em que vivo agora. Examino, perplexa, gente defendendo abusos, reinventando a realidade, negando o óbvio e abraçando o sofisma.
Volto às notícias e me sirvo de mais uma xícara de chá preto para ajudar a superar o nó na garganta. Há coisas que minha mente demora a aceitar, embora eu compreenda que são fenômenos mundiais e recorrentes. Desvio os olhos da tela por um instante. Aguardo ansiosa que a rudeza da expressão ceda espaço para o bom debate e que seja restaurada a polidez na defesa das certezas que cada um carrega. Lá vem o Popper a me lembrar o perigo das certezas substituírem a verdade. As certezas são abusadas: instalam-se sem cerimônia e dispensam investigação, checagem e reflexão. No nosso mundinho de surdos, nem como exercício filosófico se cogita estar equivocado. Errar já não é mais humano, meu caro Voltaire.
É inescapável pensar que a passionalidade e o comportamento agressivo aos poucos forçam os limites da civilidade. Os comentários de sites de notícias e redes sociais já saltaram para a vida real, tornando nosso país um local onde boas maneiras vão aos poucos escasseando. As certezas são “esfregadas na cara”. Palavrões, xingamentos e comportamentos abusivos são recebidos entre aplausos. E, paradoxalmente, tudo isso num país que fica de olhos marejados quando elogia a cortesia que impera em outras partes do mundo.
Eu disse “elogia”? Desculpe, tempo verbal errado. Leia “elogiava”. São cada vez mais raros os brasileiros que apreciam as delicadezas e os avanços civilizatórios. Bonito é vomitar na face alheia, apoiar quem “fala mesmo”, ser rude e usar uma enorme quantidade de rótulos desqualificadores para encerrar um debate sem precisar ter razão.
A bofetada matinal em forma de leitura ainda está ardendo – como recordação dolorosa de que algo muito grave está ocorrendo neste exato momento. Algo obscuro e pútrido.
Lá no fundo da caixa, a esperança luta bravamente para sair. Mas tenho um palpite que, antes que ela escape da prisão, muitas novas mazelas virão à luz. Será assim até que o dolorido cansaço nos vença ou até que a maturidade nos aponte um outro caminho? Mistério.
Sonia Zaghetto é jornalista e escritora