Anos atrás, numa festa de confraternização da clínica Vivance, onde até hoje temos aulas de pilates, fui presenteado com um livro da norteamericana Marlena de Blasi: Mil Dias em Veneza. Trata-se de um romance autobiográfico, que relata a sua viagem para encontrar o futuro esposo, Fernando, bancário veneziano. Antes de tornar-se escritora e ir morar na Itália, Marlena era jornalista e escrevia sobre gastronomia para vários periódicos dos Estados Unidos. Numa de suas viagens, experimentando a culinária das diversas regiões do mundo, conheceu Fernando e os dois se apaixonaram.
Ela, então, mudou-se para Veneza. Surgia assim o seu primeiro livro italiano, sobre a sua temporada naquele que é um dos lugares mais bonitos e apaixonantes do planeta.
Passado algum tempo, Fernando aposentou-se e o casal foi morar na Toscana, onde ela escreveu "Mil Dias na Toscana". Daí para a Úmbria foi um salto e, certo dia, amanheceram em Orvieto. O terceiro livro por ela escrito, que ganhei de minha esposa, Ilma, foi o que mais me impressionou: "A Doce Vida na Úmbria".
A Úmbria é uma região maravilhosa! Tem a mesma configuração topográfica da Toscana, a mesma paisagem. Tem o mesmo encanto, porém, não tem o mesmo charme nem a divulgação de que a Toscana desfruta, sendo um pouco menos conhecida.
Enquanto as cidades toscanas são renascentistas, em sua maioria, na Úmbria os vilarejos são predominantemente medievais. Em ambas as regiões, muitas das localidades foram construídas no topo de montanhas e colinas, por necessidade de defesa.
Uma cidade úmbria muito conhecida, mas que muitos pensam ser toscana, é Assis (Assisi), local de nascimento de São Francisco e de Santa Clara. Ela é tão medieval que, percorrendo suas vielas (vicoli), temos a impressão de que, ao dobrar a próxima esquina, vamos encontrar um Bórgia oferecendo veneno para vender. Ou um Sforza segurando um punhal...!
Ah! Orvieto! É prazeroso descrevê-la como é possível descrever assim quase todas as outras cidades da região, por suas semelhanças. Localiza-se erguida sobre um platô, a cerca de uma hora de Roma. Isto se você conseguir resistir a parar em muitos lugarzinhos charmosos, até chegar lá. É dotada de construções medievais, com poucas edificações modernas.
Lá nos hospedamos no hotel Áquila Bianca: localização primorosa no centro da cidade, no meio de tudo o que há de interessante. Quartos muito confortáveis, respeitada a fachada antiga.
Tomando o livro "A Doce Vida na Úmbria" como roteiro, partimos para explorar a cidadela. Uma das maiores atrações é Il Duomo D’Orvieto, a sua catedral. O frontispício é belíssimo, dourado, dotado de uma grande e bela rosácea, e tem uma curiosidade: Na parte superior de uma das três portas frontais, repousa a peculiar escultura de uma vaca com asas! Ali ao lado está situado o "Museo dell'Opera del Duomo", com o seu acervo de quadros, pinturas e paramentos predominantemente litúrgicos.
A cidade possui dois famosos poços: o Pozzo della Cava, que remonta à antiga Etrúria. E o Pozzo di San Patrizio, do médio evo, para mim o mais espetacular.
São 52 metros de profundidade. A sua escada é helicoidal e tem uma característica fantástica: quem desce não encontra quem está a subir. Isso se deve ao fato de que a escada, na realidade, é uma espiral duplicada, como se fosse uma imensa estrutura de DNA!
Lá no fundo a escada termina num poço de águas límpidas, cristalinas, de uns 2 metros de profundidade. Como era de esperar, o seu piso está coalhado de moedas e...
... uma câmera digital! Provavelmente deve ter caído das mãos de algum turista. Embora seja claustrófobo, não senti nada ao descer até lá, pois os degraus são acompanhados de amplas janelas que se voltam para o poço. Magnífico!
Ao chegar a Orvieto, logo procuramos a tratoria La Grotta, descrita pela escritora como pertencente ao irrequieto Franco. O livro narra que o restaurante situa-se no térreo do palazzo onde mora a autora, com uma pizzaria e uma joalharia também no andar térreo: tudo igual. Perguntamos à jovem atendente como se chamava o proprietário:
— Franco!
À noite fomos lá para jantar. Procurei il signore Franco, que ficou encantado ao saber que era personagem de um livro. Até então não sabia. Logo estava na nossa mesa e conversamos um bocado.
Perguntamos por Marlena de Blasi. Ele nos levou até a viela e olhou para cima: o palazzo todo escuro. Disse-nos que ela já devia estar recolhida, mas que, na manhã seguinte, poderíamos encontrá-la no café, logo adiante.
Indagamos como saberíamos quem era ela. Franco abriu um sorriso largo:
— Não vão confundir: La signora é um tipo felliniano. Conhecem Fellini?
— Mas claro que conhecemos! — respondemos — É o nosso cineasta predileto.
— Então, não a confundirão com ninguém!
No dia seguinte, levei certo tempo para explorar o "Pozzo della Cava" e acabei perdendo o encontro com a escritora. Porém, Ilma, que não tinha descido com o grupo, ficando a passear pela cidade, disse que a havia avistado no café:
— Franco tem razão, Zé Mário: ela é realmente singular!
Corri até o café. Ela não mais estava por lá. Procurei Franco na tratoria e ele disse que a escritora costumava frequentar o mesmo café, lá pelas seis da tarde.
À noite voltamos ao estabelecimento. Havia muitos fregueses, as mesas quase todas ocupadas. Ilma me disse, indicando sutilmente:
— Ela está naquela mesa.
E lá estava Marlena de Blasi, acompanhada de Fernando. Realmente lembrava personagens de Federico Fellini: saia longa e larga, alaranjada; meias multicoloridas com predomínio do amarelo; blusa azul intenso; rosto pintado; cabelos bem vermelhos combinando com espesso batom carmim.
A noite avançava. E cadê a coragem? Até que o vinho começou a fazer efeito e eu tomei a decisão. Fui até a sua mesa, desejei boa noite, pedi licença, e, no meu melhor italiano possível, disse-lhe que era brasiliano e que tinha viajado até ali para conhecê-la. E mostrei-lhe o livro.
A escritora desmanchou-se. Ficou tão feliz que nos convidou a sentar. Apresentei Ilma e os nossos eternos companheiros de viagens: Socorro, prima de Ilma, e seu esposo Karlisson Valeriano.
Fomos muito bem recebidos pelo grupo. Lá estavam, além de Marlena e Fernando, dois jovens: uma pediatra americana e seu companheiro de nacionalidade russa, gerente de um restaurante local.
Conversamos noite adentro. A pedido de Marlena, Fernando foi buscar três livros, os quais ela nos presenteou, além de ter feito uma bela dedicatória no exemplar que carregávamos conosco ao longo da viagem.
Temos vontade de trazê-la para lançar seus livros aqui, em João Pessoa. Ela certamente ficaria encantada com a nossa cidade e com os nossos amigos.
Foi uma noite inegavelmente memorável. No dia seguinte, viajamos para Abruzos com a forte sensação de que havíamos entrado no livro. Uma experiência intrigante, digna de um filme de ficção, tipo "Meia Noite em Paris", de Woody Allen.
Indimenticabile! Realmente inesquecível!
José Mário Espínola é médico e escritor