A linha tênue, ainda obscurecida pela noite, vai, aos poucos, clareando e se torna mais nítida no horizonte sobre o mar. O silêncio da amplitude se representa na sonoridade do suave pedal que se inicia com base nas cordas e trompas, quase pianíssimo. Assim Alexander Scriabin estreia a primeira de suas cinco grandiosas sinfonias, há exatos 120 anos.
Talvez ele seja o compositor que conseguiu, com o espírito monumental de sua eloquente concepção orquestral, exprimir de forma mais fiel a extasiante reverência à Criação Divina.
No primeiro movimento da obra com que inaugura o seu célebre pentateuco sinfônico, o autor já notabiliza a magnitude de sua deificada admiração. Um retrato do dia, e por que não da vida, se configura desde o início.
Paulatinamente, a aurora se descortina quando o pontinho luminoso da grande bola dourada vai surgindo no mundo brilhante de uma jornada sobre o mar. No solo do clarinete, a frase ascendente em um tema de sol a sol, sucede-se variada num tom acima. Está definida a alvorada fulgurante, plenificada no coro crescente de sopros e cordas que reiteram e consolidam a exposição da melodia.
A seguir, os trinados de flautas refletem os feixes de luz que escapam dançando por entre as nuvens que se aproximam. Ao esconderem o Sol, faz-se um quase silêncio, quando os violinos assumem o trinado sombrio e misterioso. Mas a nuvem vai passando e as flautas, em duo agudo, anunciam sua lenta reaparição, reforçada por solos isolados de cordas e clarinete, contornando o cenário com toda a poesia que o instante expressa.
O motivo é novamente reapresentado em sequências e variações com mais densidade sonora, afirmando que o dia se fez dia, consolidando-se e se expandindo na imaginação do ouvinte em toda plenitude. A emoção não mais se restringe ao horizonte de onde brotou a luz. Agora o conjunto harmônico se amplia poeticamente nas melodias que dialogam por cordas, metais, madeiras, ritmadas no pizzicato dos baixos, em vários planos, a exprimir o contagiante romantismo que abrange a cena completa.
Por fim, o drama começa a ser arrematado pela reexposição sequencial do tema nos sopros e madeiras, que, em clima de despedida, passam a se alternar com as cordas, dialogam com as trompas, e já sugerem tons crepusculares.
Sob a paz emergente da ideia de um ciclo coroado com lições da vida que nasce, cresce, substancializa-se na essência e, como tudo o que existe, esmorece para se despedir na esperança do renascer.
Tudo se conclui com o diálogo entre cordas e as trompas, unidas em direção ao acorde final, desenhando o epílogo de adeus etéreo e imantado de profunda esperança.
É assim que Scriabin se inaugura no mundo das sinfonias, revelando não a ponta de um grande iceberg, frio e submerso, mas um Sol imenso, repleto de vida, calor e imaginação. Para percebê-lo, basta escutá-lo com os ouvidos da imaginação e da fé no que a vida mais tem de divino.
Germano Romero é arquiteto e bacharel em música