Milênios separam o paulista Paulo Vanzolini do velho Salomão, aquele mesmo, o bíblico. Mas não consigo ler um sem lembrar do outro. Ambo...

Com a dor das mulheres

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Milênios separam o paulista Paulo Vanzolini do velho Salomão, aquele mesmo, o bíblico. Mas não consigo ler um sem lembrar do outro.

Ambos cantaram os mesmos temas: a angústia e o desespero de um coração partido. Mais: a humilhação suprema da busca por um amor vagabundo, perdido nas noites. Mais, ainda: a renúncia ao mínimo resquício de amor próprio, bem necessário ao equilíbrio e à sobriedade, ao comedimento e à compostura.


Às favas com as aparências. Os dois, cada um a seu modo e em seu tempo, devem ter assim decidido a fim de que as dores do amor sejam gritadas sem pejo aos quatro ventos quando se esteja à procura de alguém a quem se queira e cuja ausência doa mais do que a aniquilação do espírito. Teriam percebido que, elevado a tais dimensões, o amor nada precisa respeitar. Nem as reservas nem a decência.

Mas, talvez por recato inerente à condição de machos, eles assim o tenham feito com a porção feminina de suas almas. Eis, aí, portanto, mais uma evidência do quanto se parecem as mulheres imaginadas por Salomão, ao que se conta, e por Vanzolini, com todas as certezas.

“De noite, na minha cama, busquei aquele que minha alma deseja. Procurei por ele e não o encontrei. Levantei-me, saí para as ruas da cidade, pelas praças, a ver se o achava. Mas em vão”, narrou a primeira delas em “Cânticos”, o livro atribuído ao poderoso rei.

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E a última: “De noite, eu rondo a cidade a te procurar, sem encontrar. No meio de olhares espio em todos os bares. Você não está”.

Semelhantes na paixão desmedida por seus amados, essas duas apenas se diferenciam no quanto podem aceitar e perdoar. “Passado pouco tempo, logo achei aquele a quem minha alma deseja e não o deixei até tê-lo levado para casa, para o velho quarto da minha mãe”, cantou a filha de Jerusalém, novecentos e tantos anos antes de Cristo.

Nas noites paulistanas, a cria de Vanzolini não teria a mesma sorte nem a mesma têmpera: “Volto para casa abatida, desencantada da vida”. E logo a seguir: “Se eu tivesse quem bem me quisesse esse alguém me diria: Desiste, tua busca é inútil. E eu não desistia”.

De uma delas a resignação somente não absoluta em razão da reprimenda àquelas com as quais o amante se dividia: “Conjuro-vos pelas gazelas e cervas do campo que não despertem o meu amor até que ele queira”.

Da outra a raiva levada às últimas consequências: “Volto a te buscar e hei de encontrar bebendo com outras mulheres, rolando um dadinho, jogando bilhar”. E, depois, mais do que uma ameaça, a promessa: “Nesse dia, então, vai dar na primeira edição: Cena de sangue num bar da Avenida São João”.

Recorro aos meus botões e deles ouço que aos homens, quaisquer que sejam os tempos, costuma faltar a coragem para admitir uma paixão avassaladora, daquelas que rasgam o peito e esmagam a autoestima.

A verdade é que sempre nos pretendemos mais fortes do que a desgraça de um amor bandido. Há, por certo, algumas exceções entre nós, mas me parece que apenas ocorrem para confirmar a regra.

Vejamos. O francês Jacques Brel compôs “Ne me quitte pas” para aquela bailarina por quem foi abandonado. O homem cantava aquilo à beira do desmaio, com o útero que não possuía. É impressionante rever sua figura desesperada, suarenta, o retrato da própria dor, num desses vídeos dos quais o milagre tecnológico, via Internet, possibilita o resgate.


“Deixe que eu me torne a sombra da sua sombra, a sombra da sua mão, a sombra do seu cão. Mas não me deixe”. Quantos machos teriam a coragem de expor, nos palcos do mundo, um coração tão despedaçado?

Salomão, o rei, dono de harém com mil mulheres, não a teve. Também faltou a Vanzolini essa mesma coragem. Os dois, por conseguinte, inventaram mulheres para tamanhos sofrimentos.

Mais precavidos do que eu, os meus botões me advertem: “Prepare o lombo”. O aviso vem a propósito da possível contestação de algum estudioso. Algo do gênero: “Ô, estúpido, a autoria de Salomão, nesse caso, é discutível. Além do mais, a passagem por você citada é uma alegoria da relação entre Javé e Israel”.

Fico eu, porém, com minhas crenças. Há muito mais graça num rei com poderes desfeitos por uma entre mil. Por alguém da cor dos panos das tendas de Quedar, um tiquinho de gente queimada pelo Sol, um ser com o perfume de mirra e a recusa ao uso de véus. E ele, o rei, a inverter os papéis e a inventar voz feminina para suas próprias dores. Afinal, em coração alheio nem rei manda.

Se até Salomão e Vanzolini assim fraquejaram, imagine você, meu camarada. Faltem os versos que lhe ponham as dores noutro peito, ou a coragem de Jacques Brel, você terá que engrossar o couro e engolir o choro. Acredite. Sei do que falo.


Frutuoso Chaves é jornalista

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