Quando comecei a escrever crônicas, partia sempre de um assunto da minha vida. Falava de mim. Sem querer ser narcisista, era sempre com bas...

Eu, catadora de mim

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Quando comecei a escrever crônicas, partia sempre de um assunto da minha vida. Falava de mim. Sem querer ser narcisista, era sempre com base em algo pessoal que levantava voos para comentar sobre as coisas mais diversas. Falei das perdas, das mortes, dos casamentos, dos amores, das saias, das casas, da família, da mãe, dos filhos, das praias, do tempo, dos estudos, do trabalho, dos amigos, das mulheres, das dores, do sofrimento, das alegrias,
dos sorvetes, das cachaças, dos coqueiros, dos tombos, dos segredos, das curvas, das viagens, das guloseimas, dos percalços, das dificuldades, dos êxtases. E da lua!

Deixei de falar de alguns temas por pudor, por proteção... e por medo mesmo. Droga e aborto, por exemplo, são temas caros, mas escondi-os. Hoje, quero discorrer mais sobre abusos e tabus. E o faço, enfocando experiências dos outros e as minhas próprias. Quando comecei, muitos me falavam: "você se expõe"; "você se mostra"; "tem que ficcionalizar"; "distanciar-se"; "tem que inventar". Mas eu invento! Invento de mim! Do meu íntimo.

Antes, não era muito bonito falar de si. Mas os tempos mudaram. Com as redes sociais, todos comentam o que veem, o que comem, o que amam e as coisas que odeiam. Vemos Selfies des pessoa que olham para fora e, mais raramente, para dentro.

Minha sobrinha adolescente me esclarece: “Tia, a ideia do Instagram é ser você. É falar de si. Comentar de si”. Transferir de si para os outros, penso. Acho que me mostrei antes do tempo. Atravessei os espelhos. Contemplei de longe e de perto os meus sais. Sabia disso? Qual nada! Ia escrevendo sobre o meu umbigo, sobre o som ao meu redor. Só entendia disso. Observadora eu era e sou! Só o meu pequeno quadrado me gritava aos mundos. É importante? Nunca me preocupei em ser. Achava de bom tamanho compartilhar. Alguém poderia ouvir, identificar-se com o que estava a dizer.
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Eu preparo uma canção... uma fala toda minha, uma experiência da minha geração, do meu canto, do meu tempo, dos meus anos. Pode não ser tanto. É meu. É tudo. Quase tudo. Só eu sei o que foi e que é.

Virginia Woolf abalou Londres e o mundo falando de si. Como transgressora das regras da ficção do século XIX, ela começava a falar de um gato seu e, com isto, partia para teorizar sobre escrita, mulheres, literatura, silêncio, uma sentença feminina, seus abismos e incompletudes. Do pessoal para o político e literário, era assim a sua metodologia. Sem método, como falou no ensaio “Modern Fiction” e também em “Women and Fiction” e no famoso "Um Teto Todo Seu" (A Room of One's Own). Talvez essa abordagem nada convencional tenha me tornado admiradora de seus livros e de suas teorias.

Guardando as devidíssimas proporções, fui também encontrando o meu “lugar no cascalho”, lugar este de invisibilidade, no qual pairavam — como tentava explicar Virgínia — as mulheres nos jardins das Universidade de Cambridge e Oxford. Em minhas temporadas nessas duas cidades (final da década de 90) e, depois, em algumas visitas, cada vez que atravessava os jardins perfumados, ou quando buscava o melhor ângulo por baixo dos chorões às margens dos rios, ou, ainda, nos parques de suas universidades centenárias, eu conseguia ouvir os murmúrios das escritas Woolfianas e começava a me imaginar organizando ideias sobre trabalho e sobre a vida. Não sempre nessa mesma ordem.

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A cineasta belga Agnès Varda, em seu filme "Os Catadores e Eu" (França, 2000), preocupa-se com o ato de recuperar o gesto camponês do glaneur, aquele que recolhe do chão das plantações os restos do que não foi apanhado. Recuperar imagens que são subprodutos do desperdício. Recuperar também o tempo que passa, que não se pode agarrar, que sulca as mãos, que se evidencia na raiz dos cabelos (como falou Francisca Angiolillo, Folha de São Paulo, Abril, 2002 – retirado das minhas gavetas!). Outros filmes de Varda, como "As Praias de Agnés" (2008), também falam de si, da França, do Cinema, das praias onde morou. Resgatando, recolhendo, evidenciando por meio de imagens e palavras, a artista vai contando a vida dela e as experiências dos outros.

Por entre selfies, umbigos, abraços, eus e outros, vou escrevendo sobre o meu quarto, minhas vivências, as quais, quem sabe, quando jogadas feito seixos nessas ondas cotidianas, possam espalhar-se num círculo ondulante, propagando-se para as histórias de outras pessoas, mulheres, nem que sejam aquelas aqui da minha esquina.


Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora

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