Falar sobre a crônica de Luiz Augusto, como forma de lembrar seu aniversário, representa muito mais que um esforço analítico para captar e expor suas preferências temáticas e a composição dos processos criativos que predominam em sua prosa poética. Significa, antes de tudo, um reencontro com a sua forma de ser mais definitiva, esta que se eternizou através da linguagem.
Agora, muitas vezes volto a seus livros, somente pela saudade de ouvi-lo falar. E até me permito imaginá-lo reescrevendo o verso do poeta maior, para lembrar-me em sutil e terna advertência, talvez sorrindo:
— “Estas crônicas, amiga, possuem minha alma”.
Antes de pensar na leitura crítica dos textos de Luiz Augusto, é inevitável que eles me tragam a memória de uma travessia, onde ficaram gravados nossos passos, sempre na mesma direção.
Quando, em 1975, veio seu primeiro livro de crônicas, O Arco e a Fonte, os textos já estavam incluídos em minhas aulas de Português, no segundo grau. E ao longo do tempo, o cronista foi modelo e exemplo de quanto era preciso ler, para escrever bem.
Dez anos depois, outra coletânea: As artes da paixão. Então as crônicas do meu amigo já eram estudadas no curso de Letras da UFPB, em minhas aulas de Teoria da Literatura. Não apenas como gênero, mas, especificamente na análise do processo de construção da literariedade.
Essa inclusão de suas crônicas no sistema de ensino, Luiz Augusto considerava um reconhecimento maior. Valorizava, sobremaneira, a iniciativa de estudar o autor local onde, antes, somente as grandes estrelas consagradas eram admitidas.
Em 2001, distinguiu-me com o pedido do prefácio para A Dama da Tarde, seleção que ele organizou sob critério antológico.
Busquei reunir, com esmero, os conceitos teóricos para a definição da crónica, de modo a justificar sua qualificação como espécie literária. Na verdade, uma síntese de muitas conversas que tivemos.
Neste prefácio, também ousei o impossível. Inventariar os temas trabalhados por Luiz Augusto, temas que se multiplicam como as possibilidades infinitas de percepção ou de imaginação do real.
Estados de espírito materializados em substância poética. Destinos devastados, prodígios de sobrevivência sacralizados na perenidade das imagens. O cotidiano transfigurado pela perspectiva lírica. A violência mil vezes contestada. O riso que castiga os costumes. A doce melodia dos afetos. E "A grande dor das coisas que passaram".
A partir de 2006, Luiz Augusto empenhou-se em organizar o Memorial da Pensão da Paz Dourada, em que se concentra toda a habilidade do escritor na exposição do burlesco e na construção da ironia, para a configuração do cômico.
Flávio Tavares tornou-se parceiro do amigo, enriquecendo a crônica biográfica de D. Margarida com suas preciosas ilustrações, legando-nos outra expressão do humor.
Não houve tempo para o lançamento deste livro, com a presença do autor.
Fazendo intercâmbio cultural com o estado de Pernambuco, Luiz Augusto passou a escrever, semanalmente, para o Jornal do Comércio. Desta produção resultou “Eu e outros arrecifes”.
Um título polissêmico, no qual o significado aparente remete a realidades geográfica e histórica da capital pernambucana. No entanto, a pluralização do pronome inclui rochedos preexistentes, de natureza diversa. Circunstâncias do eu, simbolicamente transfiguradas para a correlação com o mito do Prometeu, manifesto no dilaceramento inevitável em que se consomem os destinos e na consciência da humana impossibilidade de lutar contra esta certeza.
O processo de construção da prosa poética de Luiz Augusto, exemplificado na breve análise do título Eu e outros arrecifes, me faz recorrer ao verso de Bruno Tolentino para concluir que:
O prodígio da língua, como o lento
desdobrar-se do vento em vendaval,
desdobra-se no ar, mas vem e vai por dentro
de um túnel, cristalino e intemporal,
um casulo enraizado no geral
que abrisse seus enigmas no momento:
delicado, fugaz e impessoal.
desdobrar-se do vento em vendaval,
desdobra-se no ar, mas vem e vai por dentro
de um túnel, cristalino e intemporal,
um casulo enraizado no geral
que abrisse seus enigmas no momento:
delicado, fugaz e impessoal.
Não é demais repetir que o sentimento poético se encontra na natureza de todo ser humano. Diria mesmo que o sentimento poético é uma afirmação de humanidade. Mas a expressão poética é difícil conquista dos que dominam a língua e seus prodigiosos recursos. Privilégio de poucos.
Luiz Augusto era um desses privilegiados. E, embora também se tenha dedicado, no campo da literatura, ao ensaio, ao romance, à poesia, foi na crônica que ele apurou seu traço mais característico.
A espécie narrativa, que ele costumava transformar em poesia, incorporou-se ao seu cotidiano, como uma necessidade vital. Assim, nas situações que pudessem parecer mais desfavoráveis, jamais deixou de escrever e de pensar na continuidade dessa forma de interagir com o mundo e de permanecer.
Na última vez em que pôde ir a minha casa, teve o cuidado de levar impressa a série "caminhos de mim". Alertou-me que havia três inéditos. E completou: "Quando acontecer, você vai saber o que fazer." A elipse e o meu compromisso sem palavras.
“Caminhos de mim - andanças pelos tempos descalços”, o sexto livro de crônicas do nosso amigo imortal, também ilustrado ou recriado por Flávio Tavares, teve lançamento póstumo. Com aprovação unânime do Conselho Estadual de Cultura, passou a integrar a coleção Biblioteca Paraibana.
Embora tenha escrito quase até o último instante, Luiz Augusto evitou, de todas as formas, imprimir um tom confessional a suas crônicas, de modo que elas pudessem refletir a dor ou a perspectiva da morte.
Quando tudo era mais difícil, ele se refugiou na memória da infância para refazer caminhos encantados, providencialmente "ocupado em ser menino outra vez". Somente o leitor muito atento identificará uma ou outra expressão ambivalente, sempre inserida no contexto do passado, mas tendo também o presente como referencial.
É o que acontece, quando ele anuncia que vai partir de um caminho diferente, lembrando outros que escreveram itinerários líricos da cidade: "Agora fica mais fácil começar partindo de mim”. Ou então, quando relembra seu primeiro baile, ao som de Frank Sinatra, e, estilizando o título da canção, escreve, encerrando uma sequência de urgências: "antes que os meus olhos fiquem esfumaçados para sempre".
A produção do cronista excede os seis livros que procurei sintetizar. Mas neles está sobejamente fixado o estilo que lhe garante a perenidade. Sonho do escritor ainda muito jovem a projetar, em antecipação premonitória, o futuro bem distante:
"Um dia não estarei diante desta janela, a colher manhãs encantadas em azul, na superfície do mar, isso não importa. Mais adiante, o Cabo Branco não precisa ir a janela nenhuma para que se componha a mesma cena, Eterno vigia das formas perpétuas, o Cabo Branco devolver-me-á aos ventos do dia, e, juntos, perpetraremos a nossa própria eternidade”
Ângela Bezerra de Castro é professora, crítica literária e membro da APL