Pirografia I Vou na areia, subindo
 Como uma onda, descendo
 E subindo. Vejo-a bem próxima:

Assombrosa e vazia

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Pirografia


I

Vou na areia, subindo

Como uma onda, descendo

E subindo. Vejo-a bem próxima:

Mobília veloz, ora em remanso
Na maré alta, na tarde alta
Desertada de homens

Assombrosa e vazia

Mas cheia, cheia de si

Do velho militarismo do mar


Parece acima dos olhos
Balançando empedernida
Como cimalha que sobreviva

À torre, de pouso

Na grande muralha

Sem vigias ou bandeiras

Que quisesse manter sumério
Acadiano segredo
Impossível de guardar


Com seu entalhe sutil
Da variada madeira
Arregimentada em corpo uno

Sem quaisquer atavios, e nua
Na forma, sem outra cor
Que a da carne
Ajustada e dura

A lembrar confissão de mulher
Por cuja beleza própria se convence

A nada dissimular


II

Alguém, uma mão caprichosa
Que usou de serrote, formão
Assim a quis, de invisível

Besunto, livre de tinta, polida e intocada
Mobília de lar antigo, há muito

Muito tempo desfeito


Mas que de sua eterna casa fosse
E eternamente fosse
Viajando

Mas agora ei-la: joia próxima
Milimétrica, e talvez fenícia
Ardentemente preferida

Entre tantas e nenhuma
Única e bastante na vitrine

Do mar quase à porta, iminente



Com algum céu confuso, mal trabalhado
Qual improvisado cenário
De tampão, mal arrumado

E no entanto permanece tripulada
Por uma corda, junto ao banco
Maleável de areia


Despida do enxoval de alfaias
Destila verniz e filigrana

Na calma desordem
 das águas


III

Pequeno barco, pequeno
Com seu rebordo inchado
De gavetas justas, nos vãos

Dorme ao sol, já tépido

Na irremediável perdição

E eficiência do sono, para quem

Chegou da longa noite

Do festim diabólico


E nele só o brunido

Os polimentos da borrasca


No entanto há mergulhado
E – vezes tantas – há saído
Das guelras do trovão

Indócil sempre, na recusa obstinada
De todo destino não concebido

No ardiloso mar, tão repulsivo


Na gula feroz e destripada
Dos abismos, que seu álacre
Perfumado fumo de peroba

Segue despertando
Chuva e noite, rasgando
O pleno pulmão da fúria

Sem que o mar o saiba :
Presa, ou lince

Arpão

Ou hígido peixe


Mas antes de um estrondo
Antes ainda, daquele longo
Tenso apagão que o precede

Num abrir e fechar

Da retina, (no que ainda

É o silencio, o mar uníssono

E o vento), a elétrica chama
O tem surpreendido. Há feito
Inúmeras, grandes pirografias


Naubrumas, aquele barco irrompe

Indescolável da tormenta



Alberto Lacet é artista plástico e escritor

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