Pode parecer aos mais impacientes que já não haja, a estas alturas, lugar para mais especulações a respeito da traição de Capitu, no célebre romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Realmente. Tanto já se escreveu sobre esse tema, admitindo-se ou negando-se a tal infidelidade, que talvez não se justifique voltar ao assunto, tido por esgotado. E, no entanto, volta-se. Exatamente porque essa é uma das características dos clássicos: sua inesgotabilidade, sua permanente provocação aos leitores, suscitando eternamente novas leituras e enfoques, e rejuvenescendo o que já parecia, aos mais apressados, definitivamente velho e exaurido. E Dom Casmurro, ninguém pode negar, é verdadeiramente um clássico de nossa letras, com potencial de se tornar um clássico das letras universais, caso um dia o mundo resolva descobrir nossos autores.
Enquanto isso não acontece, seguimos nós, brasileiros, a estudar o escritor do Cosme Velho, provavelmente o autor de mais rica fortuna crítica entre nós, fato que vem comprovar, pelos critérios acima arrolados, a condição de clássico do mulato brilhante que, oriundo do Morro do Livramento, chegou, merecidamente, à presidência da Academia Brasileira de Letras.
É o que se vê, agora, com a recentíssima publicação dos dois volumes da obra "Escritor por escritor – Machado de Assis segundo seus pares", de autoria dos pesquisadores Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn, em caprichada edição com o selo da Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo.
A referida obra naturalmente não pretende reunir tudo que já se publicou sobre o autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Propõe-se apenas – e não é pouco – oferecer ao leitor uma amostra do muito que já se escreveu sobre Machado a partir de sua morte, em 1908, até o ano do centenário de sua partida, 2008, selecionando, para tanto, textos dos mais consagrados escritores nacionais, desde Rui Barbosa, que proferiu, em nome da Academia, o discurso de corpo presente no velório do ilustre morto, até o contemporâneo Milton Hatoum. É um vasto e rico apanhado do olhar que o singular escriba carioca mereceu e tem merecido de seus colegas de ofício, ao longo do tempo.
Os textos selecionados têm de tudo: do ensaio mais extenso e criterioso à crônica mais leve e despretensiosa. Todos eles enriquecem, de algum modo e em alguma medida, o já amplo saber reunido sobre o autor homenageado, mesmo para aqueles que, por dever de ofício ou deleite pessoal, têm se aprofundado na análise da produção machadiana. Assim é com a contribuição séria de Mário de Andrade e com a espirituosa mas não menos relevante manifestação de Millôr Fernandes. Leitura, portanto, que se recomenda a “gregos e baianos”, com a devida licença de José Paulo Paes.
Dos oitenta e sete textos que a obra apresenta em sucessão cronológica, de 1908 a 2008, chamaram-me a atenção, entre outros, dois pontos: primeiro, o significativo número de textos que tratam particularmente do romance Dom Casmurro, o que demonstra o destaque que esse livro assume no conjunto da obra machadiana, em que tantos outros escritos importantes estão contidos; segundo, a peremptoriedade com que Otto Lara Resende afirma – e prova – não ser possível duvidar-se da traição de Capitu a Bentinho, face o que está exposto no próprio Dom Casmurro, em especial nos capítulos 106 e 113, que examinaremos sumariamente a seguir.
No capítulo 106, intitulado “Dez libras esterlinas”, segundo Lara Resende, Capitu revela “os escondidos encontros” que mantinha com Escobar. Com efeito, levada pelo curioso marido a contar sobre uma ignorada poupança convertida em moeda inglesa, a mulher termina por confessar que a conversão fora feita pelo amigo do casal, que a visitara em casa, naquele dia mesmo. Bentinho estranha o silêncio de Escobar a respeito dessa visita, ao que lhe responde a esposa: “ ... eu não lhe disse para que você não desconfiasse”. Estava (está), portanto, bastante claro que o prestimoso amigo andava a visitar secretamente a enigmática mulher do Casmurro e que esta ocultava tais visitas do marido.
Já no capítulo 113, de título “Embargos de terceiro”, a coisa fica ainda mais evidente. Certa noite, Bentinho foi sozinho ao teatro, pois a mulher alegara ter adoecido. Preocupado, o zeloso marido retorna à casa antes de findo o espetáculo. E quem ele encontra à porta do corredor? Exatamente o amigo Escobar, que alega ter vindo para discutir com ele uns “embargos de terceiro”.
E o mais curioso é que Capitu já estava “melhor e até boa”. O crédulo marido então observa: “Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era a verdade pura”. Ora, que nova coincidência essa de Bentinho encontrar de novo Escobar em sua casa exatamente durante sua ausência, e já adentrado à porta do corredor, mesmo sendo noite, o que, convenhamos, não era absolutamente procedimento adequado para a época, em que os pudores e as aparências contavam tanto. Qualquer marido menos ingênuo desconfiaria dessa descomedida intimidade amical. Mas Bentinho só vai se dar conta disso quando já for tarde, confirmando o ditado de que o traído é sempre o último a saber.
Claro que alguns poucos continuam apostando na inocência da dona dos olhos de “cigana oblíqua e dissimulada”, mas é exatamente isso o que faz com que Capitu nunca saia de cena, comprovando seu indisputável lugar de mais discutida personagem feminina da literatura brasileira, em todos os tempos.
Francisco Gil Messias é cronista e ex-procurador-geral da UFPB